Sunday, April 30, 2006

Dona Maria

Com um arrepio ao fim da tarde, pelas mãos de Carlos Drumond de Andrade chegou a mim a mãe da Dulce: a Dona Maria.
A Dona Maria, quando a conheci, já se movia mal. Pousava de leve sobre as coisas, falava baixo, murmurava à vida.
A Dona Maria era a mãe…da Dulce.
Das flores do jardim que olhava curvada e explicava de cima com carinho.
Lembro os bolos – ainda guardo na minha agenda a receita do chifon de laranja, que ela me ditou de cor, num passeio também ao fim da tarde. Lembro o pão de abóbora e frutos secos. Lembro a casa que se confundia com a terra, a pedra castanha posta e sobreposta, colada com terra, para sobreviver na sua precariedade ao tempo.
A Dona Maria era a casa, era o jardim, era a terra.
Agora a Dulce é a Dona Maria.
Agora a Dulce é a Mãe.

Santa Maria

Dizia, a quem me entende, duas horas depois de terminar a visita a Santa Maria no Marco, que se não for mais, só por momentos destes vale a pena continuar a Cultour.
Só pode ser assim, com pessoas que gostam de ouvir, gostam de entender e vão apenas à espera de que aconteça. Se esta viagem fosse só com arquitectos, Álvaro Siza não teria a oportunidade de nos falar de espírito, de teatro, de arquitectura. Porque é de arquitectura que se trata, quando fala do movimento do ajoelhar, do levantar, do barulho do objecto que cai. Porque, como bem terminou, o espírito não se constrói porque se quer, o espírito está… e está sempre, numa, casa, num museu, num hotel, em suma numa pedra ou numa árvore. O espírito não faz parte do programa de um templo, cristão ou pagão.
Mas ele, Siza, é assim, disponível e total. Sentado no meio da assembleia a falar e a responder às inteligentes perguntas que lhe foram feitas. Ouviu e contou…e nós absorvemos por dentro, ficamos impregnados de um estado.
Não tenho fotografias, guardo-as na alma: o azul intenso recortado na alta porta de madeira já vivida; a barriga grávida da parede pronta à oferta, a reflexão difundida da luz tépida sobre os azulejos que reflectiam ainda o som…da água que escorre pela pia de mármore, a marca do homem que vem até nós pela paisagem exterior que se oferece, pelo som dos passos, dos objectos manipulados e até dos grafittis ou das esmorradelas nas paredes.
Não precisamos por certo que nos indiquem o caminho, que estabeleçam paredes/regras nem que nos dirijam o olhar, basta que nos deixemos guiar para esse estado, essa eterna viagem, que nos leva de nós para Deus.
Agradeço o prilégio.

Friday, April 28, 2006

Torre do Burgo

Talvez o projecto mais abstracto do arquitecto. Projecto em que a pele é determinante, puramente conceptual. Pilha de madeira, de esteios de granito ou de betão, ou apenas torre. Edifício e encomenda que em 1991 não era comum ser entregue a um arquitecto autor. Mas foi assim em 1991. O projecto de uma torre apanhou de surpresa o arquitecto habituado a projectar casas. A grande escala foi por isso um desafio. Resolvida a questão da relação com a rua, neste caso a Avenida, através de um edifício substancialmente mais baixo, ficou a torre, que agora, em 2006, se ergue alta e bem visível para quem circula na Avenida, na VCI ou na parte ocidental da cidade. Em Junho próximo vai terminar a obra, mas antes disso, o arquitecto, aceitando o repto da Cultour, vai guiar-nos pelos seus interiores explícitos e implícitos. Iremos perceber como se ilude a escala ou como o desenho pode determina-la. Como se relaciona interior e exterior, como o conceito pode ser construído sem cedências e com uma coerência a que não é alheia a técnica – a engenharia, a regulamentação, a construção, feita acto e tornada real, também pela nossa visita.
No próximo dia 20 de Maio, o arquitecto Eduardo Souto Moura, guiará as pessoas que interessadas pela arquitectura, o irão acompanhar nesta incursão por uma das suas obras mais emblemáticas. Esta é uma oportunidade única para visitar esta obra de um modo integral e orientado.

Wednesday, April 26, 2006

com ou sem cravo

Há dias assim contra a norma, contra a regra, que nem por isso me seduzem. Vagueio pelas horas como sonâmbula, sem deixar de ser uma imagem desfocada, descontextualizada: nem mãe, nem mulher, nem profissional, nem dona de casa, nem mulher de limpeza. Retiro a maquilhagem que nada encobre nem nada refaz. Dispo a roupa e apetece-me pôr sobre o corpo, para conformar a brisa, uma t/shirt velha e umas calças largas não de forma, mas por ausência de conteúdo…e apagar-me lentamente em vapores de incenso e penumbra.
Há dias assim, dias de mudança, dias sem nome e sem tom, ainda que cheios de significado social e cultural: 25 de Abril. Talvez assim seja porque Abril 25 tem para mim muito significado na memória. Tem demasiado significado para poder ser confundido com uma polémica sobre um cravo na lapela, ou não, enquanto se faz discurso na Assembleia da República. Porque sim ou porque não, falsa discussão, sobre a posse de um símbolo, que não morrerá na minha história, com ou sem ele na lapela ou no decote.

Monday, April 24, 2006

Uma história de Violência- David Cronenberg

Senti desconforto. O filme, do princípio ao fim, não nos deixa desviar um segundo do problema essencial: a violência extrema e potencial que todos nós carregamos e a fina e precária linha de fronteira que separa o bem do mal. Porque a mais pura violência tem justificação.
O percurso da personagem principal Tom Stall e Joye, não é linear como também não é linear a mistura das duas identidades, no presente. Elas no mesmo tempo se misturam, num tempo cronológico, embora coexistindo separadas ainda, são, sem qualquer sombra de esquizofrenia partes do mesmo homem, presente. Embora para Edie talvez essa fosse, a esquizofrenia, a justificação mais pacífica para perceber o marido, quando, ao fim de vinte anos de casamento, o descobre um assassino.Ela manifesta repulsa ao descobrir que o marido que amava é também outro: porque não o possuia completamente e porque não o reconhece nesta nova personagem.
Mas não é esse o caminho que segue a história, nem que seguem as outras personagens, de que o caso evidente é o filho. Para o bem e para o mal o assassino mistura-se com o marido, sem se destruírem, antes reconstruindo-se e dando corpo à sua verdadeira identidade. Um, sem o outro, não existem. E no olhar final que trocam, ela percebe-o integralmente (esta é a minha leitura, já que tudo fica em aberto).
Tom nunca deixou de ser Joye. Tom apagou Joye por opção até ao momento em que, para defender a sua nova vida (a empregada, o filho e a si próprio), deixou explodir a violência de Joye. Não era uma questão de esconder o passado, mas de sobrevivência, de uma escolha definitiva da sua vida de opção. A ideia de que são os contextos que criam os assassinos também não justifica comportamentos, por si só. Porque Tom teve que atravessar o deserto para mudar e mudou, deixando para trás o irmão e a violência gratuita. Mudou para a aparente “normalidade”, que contém sempre, ainda que submerso e oculto, o lado de Joye. Mas não é essa a normalidade?
Impressionaram-me ainda as duas cenas de sexo: a primeira pelo reencontro com a adolescência e a paixão de um casal com vinte anos de casamento. Num cenário recomposto, ela seduz o marido para outro tempo. Tempo de gozo, de desprendimento, de surpresa, de subversão. A segunda pelo reencontro de Edie com Joye, um lado violento e essencial, sem limite e sem tempo, em que o prazer se consuma no desconforto de o viver para além da coerência e do já adquirido.
Na linguagem o filme é também essencial. Na construção do discurso narrativo transporta-nos, desde o início, para um limiar alto e contínuo, sem oscilações. Nada ( ou quase nada) está a mais. A transfiguração das personagens obtida pela posição da câmara e pela iluminação é incomodativa de tão real: sem nada aparentemente se passar.

Saturday, April 22, 2006

sobre a mesma mistura

Ainda sobre a mesma mistura…aquela que me faz aspirar à eternidade e por momentos vivê-la. Longos momentos da tal beatitude a que só se chega, segundo Damásio ou Espinosa, pelo controlo sobre os estímulos emocionalmente competentes negativos: absorvendo-os para os reduzir, pela sua experiência controlada, criando assim imunidade e deles fazer estímulos emocionalmente competentes positivos. Nesses momentos é possível experimentar a beleza pura, do bem, bem-fazer, bem sentir: interferindo milimetricamente e gratuitamente com os outros (amando), ouvindo Bach ou Mozart, Schubert ou Malher, como diz Damásio, a quem eu neste momento acrescento Keith Jarret ( como poderia acrescentar mais alguns), vendo Miguel Ângelo; experimentando Siza; ouvindo Herberto Hélder; lendo Sophia; olhando o mar ou as pedras de granito em paisagem agreste; conversando simplesmente sobre isto, com…, com…, com… e com.
Outro dos caminhos é a ciência. Sobre esse estou menos informada, mas interessa-me cada vez mais- e na arquitectura vejo, ainda, esse lado potencial.
E finalmente percebendo, por isto e pelo muito mais que se chama esperança, que não estou sozinha.

misturas explosivamente pacíficas

“ A solução Espinosa pede ao indivíduo para reflectir sobre a sua vida, com o auxílio do conhecimento e da razão, na perspectiva da eternidade e não na perspectiva da imortalidade de cada um. E a liberdade é um dos resultados da solução Espinosa, não a espécie de liberdade que habitualmente contemplamos em discussões sobre o livre arbítrio, mas sim uma liberdade radical, uma redução da dependência em relação aos objectos de que somos escravos. Um outro resultado é a possibilidade de intuir as essências da condição humana. Essa intuição junta-se a um sentimento de serenidade cujos ingredientes incluem prazer, a alegria, o deleite mesmo, mas para o qual a palavra beatitude me parece mais apropriada (...). Este sentimento “intelectual” é sinónimo de uma forma de amar a Deus de modo intelectual – amor intellectualis Dei
António Damásio; Ao Encontro de Espinosa; Publicações Europa-América; Pág 308

Este último capítulo do livro foi para mim uma revelação cientifica e filosófica. Nele encontrei o principio das minhas dúvidas, das minhas angústias … e da salvação pela esperança, segundo Espinosa, na última frase citação do livro “ A esperança nada mais é do que uma alegria inconstante que emerge da imagem de qualquer coisa futura ou passada, sobre cujo resultado temos alguma dúvida.”
Sempre.

Em fundo Keith Jarret, Concerto de Paris, em boa hora veio ter às minhas mãos.

Thursday, April 20, 2006

cultour

Tresmalho-me nas ondas da Cultour. Apostada num projecto que iniciei há dois anos, adquiriu visibilidade há um ano e ainda não vingou completamente, mas dá sinais disso.
Que me satisfaz e me cumpre. Me dá a alegria das conquistas por entre saudáveis gargalhadas. Somos uma equipa que cada dia se vai tornando mais coesa e mais complementar. Cada um vai protagonizando as tarefas que mais tem a ver com as suas características. Conquistamos pessoas para o terreno da arquitectura como profissão, desempenhada com paixão e rigor. Tarefa que arrebata e eleva e nos faz vibrar a cada conquista. Às vezes tenho medo de que o contexto não confirme este projecto.
Noutros países projectos destes tem sucesso. Em Berlim uma empresa do género programa duzentas viagens por ano! Aqui, fazem-se mais do que isso certamente. Mas todas, ou quase todas com base no expediente, no trabalho sem recibo e sem encargos, feito pelo amigo do amigo, que até tem um amigo, que está cá a trabalhar no Siza ou no Souto Moura e dá um jeito. Somos explorados, exploramos e deixamos que nos explorem. Até quando?

Monday, April 17, 2006

santa bárbara



Começo a escrever sem destino. Como sem destino foram os últimos dias passados com uma grande família muito perto da natureza e da precariedade.
Ao abrir o blog descobri um post que vem de São Paulo. Abri-o. Nas fotografias reconheci alguns dos lugares por onde passei aqui em Portugal, na Beira Alta, ainda terra de paixão. Só que aqui percebi que a atitude perante a paisagem não será a mesma. Aqui estraga-se a paisagem, para marcar-se o tempo com o sentido de posse sobre o lugar. Aqui vi a Santa Bárbara destruída pela mão do homem de hoje: uma estrada aberta rumo ao topo, um morro amontoado de perdas partidas e uma Santa (Bárbara) grotesca de granito pousada em cima do morro artificial. No sopé um altar de granito voltado à paisagem e uma placa comemorativa do acto, fixo ao morro.
Santa Bárbara faz parte da minha memória. A primeira vez que lá fui, a pé, não havia outra forma de lá chegar, teria dez anos. Tínhamos partido sem destino, ou talvez o destino estivesse apenas na vontade do meu pai que nos guiou: a mim, aos meus dois irmãos e a dois primos. Subimos a encosta inclinada, com paus e uma bandeira da monarquia que sempre levávamos. Não sabíamos bem o significado da bandeira, ela era para nós apenas uma marca e um aviso que permitia a comunicação com a restante família que ficava em casa, no monte em frente e que, com os binóculos, outro objecto fetiche da minha infância, nos procurava por entre as pedras e a vegetação rasteira característica da altitude. Do alto tínhamos o mundo aos nossos pés, o nosso pequeno mundo feito uma imensidão.
A descida foi atribulada: pela sede, pela trovoada, pela chuva, pelas bolhas nos pés. E depois da descida rumo a Lalim no vale do Varosa, restava ainda a subida pela outra encosta até casa.
Voltei lá mais tarde, duas vezes ainda a pé.
Ontem fui de carro. Vi a violação do sítio arqueológico. Os meus filhos subiram um pouco mais, atravessaram a “floresta dos druidas” ( plantação densa de coníferas feita há cerca de trinta anos) e lá de cima olharam um horizonte sem mácula.

Thursday, April 13, 2006

quarta feira (ainda) santa

Mesmo nas férias de Joana, este blog está abandonado há dias. Para mim dias cheios…de trabalho. Planeados ao minuto e vividos tão absorventemente que os intervalos sobrantes são as viagens de automóvel ou então um cair na cama como uma pedra e dar lugar aos sonhos, estúpidos, frequentemente, mas também frequentemente muito exactos e explicáveis. Daqueles que nos perseguem durante o dia em imagens, que de soltas, se conjugam.
Tudo sempre feito a pensar no fim-de-semana de Páscoa – a tal pontuação, que entrecorta a escrita de parágrafos densos.
Volto a falar dos ritos e da Quaresma. Vivida de um modo exterior à religião cristã, mas aproveitando o conceito: luto, revisão interior, olhar para dentro, jejum, deserto. Como é possível deserto no nosso mundo sobrepovoado e cheio de estímulo? Um apelo, uma vontade, uma mudança, um recentramento: posso abrir novamente os olhos.

Sunday, April 09, 2006

boneca de linho

Boneca de linho, o que fazes?
Porque reeditas sentimentos?
Levas-me contigo
e não sabes que as tuas penas
são momentos.
Sombras do pecado ancestral
Sempre eco
de uma culpa irreal
Que torna a angústia em tensas linhas
Montadas em redes finas
Tecidas na mesma malha das minhas.

A pergunta, sempre uma miragem:
Como é possível viver assim,
Em terreno de alta voltagem
Rumo ao horizonte sem fim?

Wednesday, April 05, 2006

vocabulários

Exausta de vivências paralelas que se entrecruzam:
políticas, projectos, planos, estratégia, conceito, parcerias, custos, sustentabilidade, criação de públicos, multiusos, interagir, integrar,emocional, acertivo, autentozóide, liderança, eficácia, eficiência, recursos, sistema, diversidade, coesão, viável, divulgar, comunicar, interactividade,empreendorismo,…

Alma, lugar, sentimento, amor, afecto, emoção, sabedoria, luz, Terra, universo, raízes, silêncio, tudo, nada, essência, vazio, intimo, individuo, privacidade, perda, sonho, fantasia,ciúme, desejo, sexo, sobrevida, morte, tempo, momento, espaço, cor, perfume, corpo, mãe,….

Minuto, hora, dia, trânsito, stress, violência, exaustão, limite, pobreza, fachada, exterior, púbico, sexo, droga, comida, promoção, valor, empresa, corpo, …


de partido a filosofia ou princípios e agora é o conceito.
Apenas palavras, que se excluem ou se incluem, conjunção ou disjunção na matemática, ciência exacta da VIDA.

Tuesday, April 04, 2006

Os Cabelos

Os Cabelos

Sinto os cabelos
A pisarem-me o pescoço
A entrarem em mim
Pela redonda gola da alma.

Enrolados em meus ossos,
Tecem os fios do meu corpo
E entrançam-se nas suas dobras.

Olivia Rosmaninho (com voz aqui)

Monday, April 03, 2006

Domingo (versão 2)


Domingo, esta semana, não foi em família. Aveiro, à semana, custa-me muito. Por razões do coração. Domingo foi fotografias à hora do almoço e do jantar, gelados, músicas, a varanda da Raquel e muitos passeios sozinha. Muitas ruas, muitas casas, muito ar. Ainda bem que mudou a hora.

Sunday, April 02, 2006

domingo

Fechei os olhos para o sol. O verde passou a laranja e depois a cor de tijolo escuro e novamente a laranja claro que escureceu até à cor de tijolo escuro. Os raios de sol fim de tarde de Primavera, lamberam-me a cara, docemente. Um verdadeiro domingo de Páscoa ainda em tempo de paixão. Ao longe ouvia a monocórdica voz do padre que relatava a paixão de Cristo, ampliada até este infinito pelo megafone, em dia de procissão dos passos. Quase esqueço este ritual! Preparo pacientemente o grande fim-de-semana que se avizinha para redescobrir na natureza a força das coisas. Tão somente a força da vida, por detrás das minhas pálpebras cor de fogo.
Nada como este domingo de sol para me libertar da noite longa dos últimos dias e fazer regressar a paz do dia. Finalmente, sempre concluo que sou diurna. Sol do sol, sou do silêncio conquistado, sou da luz, sou do dia.
Ainda bem que mudou a hora.