Monday, October 31, 2005

Outono [parte 2]


No Outono, que começa com tigelas de marmelada, nós sentamo-nos tardes inteiras a trabalhar, na mesa da sala, enquanto a chuva molha as folhas acabadas de cair.

Sunday, October 30, 2005

Escola de Educação Ambiental da Quinta da Gruta


Voltei à Escola Ambiental da Quinta da Gruta.
Depois da inauguração formal. Hoje com chuva.
Pela segunda vez esta obra voltou a falar-me. Pondo a hipótese de o conceito não ser brilhante (sobre este tenho alguma dificuldade em estabelecer qualquer julgamento) penso que nesta obra, conceito e construção, não só andam a par, como se identificam completamente. É paradigmática sob este ponto de vista: a exaustiva atenção para que cada pormenor e mais do que isso, para que o próprio processo construtivo se identifique com a ideia. Sente-se que o resultado decorre duma íntima relação da obra com o seu autor e deste com o construtor/artesão. O processo construtivo está completamente determinado pelo projecto e pelo resultado que se pretende obter. Mudar a ordem de construção, mudar o dimensionamento de uma peça, de uma das camadas de que é composta a parede ou a cobertura, implica uma sucessão contínua de alterações em cadeia. Não há detalhe, o detalhe é a própria obra.
Tudo se conjuga para a desconstrução da forma a partir dela própria. A forte presença volumétrica exterior, construída a partir de uma solução de decomposição dos volumes ritmada e de regra mais sensível do que racionalmente perceptível, abre-se a um interior desconcertante. Um corredor roto, completamente iluminado de luz natural que nos coloca no exterior. Um corredor/rua que se vai sucedendo em praças, largos, recantos, mais ou menos misteriosos. Ainda que de um relance, após a passagem do átrio iniciático, se abranja toda a longitude do edifício, ele nunca nos é presente, excepto pela condição do nosso percurso.
Aqui arquitectura percorre-se, a arquitectura usa-se.

Saturday, October 29, 2005

Machu Pichu



Quando há dias ouvi a notícia dos turistas que ficaram bloqueados por uma derrocada em Machu Pichu, recordei a minha viagem, também em Outubro, mas de 2004, faz hoje exactamente um ano.
Esta é uma memória recorrente que faz tanto mais sentido quanto o tempo dela nos afasta. O peso da altitude, a obra do homem e a pujança da natureza … e eu, perdida no ar rarefeito, com os movimentos lentos e entrecortados pela atmosfera e pelos raios intensos do Sol, como planos fixos.
De resto o mistério que ainda envolve este lugar contribui para o insólito da experiência.
Ficar preso em Machu Pichu deve ser assustador. Porque esta cidade encantada e perdida emerge de desfiladeiros apertados donde se despregam grandes pedras. Águas Férreas, povoado donde se acede a Machu Pichu é asfixiante – uma fenda que é bom deixar. Lembro-me de comentar que não queria ficar naquela terra nem uma noite. Ao contrário Machu Pichu é uma fuga para o céu onde apetece repousar.
Deixo aqui um dos desenhos que então me ajudaram a sentir esta cidade.

Snow Borne Sorrow


A tarefa a que Sylvian, Jansen e Friedman se propõem, ao juntarem-se sob o nome de 9 Horses, é a revitalização da pop acústica já muito explorada por Sylvian, ao longo do seu percurso musical. Snow Borne Sorrow é um disco que escorre como um todo parecendo não ter princípio nem fim, sem se destacar uma canção. Isto é bom, não mau. Um disco para ouvir no quotidiano: ao acordar, no caminho para a universidade, nas aulas de desenho, no comboio, no carro e numa conversa ao jantar, a trabalhar, para adormecer, enquanto sentado, a ouvir o vento rebolar, do outro lado da janela. A voz de David Sylvian é inconfundível, grave e profunda, com uma dicção perfeita, desvendando as letras geniais. Os músicos, de uma mestria exímia, tocam melodias complexas em pormenores que resultam num ambiente quente e sensível. Steve Jansen e a sua bateria e percursão estão no seu melhor. De salientar só a vontade que me dá, ao ouvir a faixa número 8, Serotonin, de abanar e balançar a cabeça, como fiz no carro, com o pai, hoje. O grafismo do cd é belíssimo e cuidado. A comprar, não aconselho download. Podem ouvir-se alguns segundos aqui.

Friday, October 28, 2005

apenas um poema

Não são duradouros, o choro e o riso,
Amor desejo e ódio:
Penso que não fazem parte de nós depois
Que passamos o portão.

Não são duradouros, os dias do vinho e das rosas:
Saído de um sonho enevoado
O nosso caminho emerge por algum tempo, fechando-se depois
Dentro de um sonho.

Ernest Dowson (1867/1900)
In Rosa do Mundo- 2001 Poemas para o futuro
(tradução de Cecília Rego Pinheiro)

Thursday, October 27, 2005

Joaniversário



(peço desculpa a todos os que já passaram os olhos por esta imagem...) É só para dizer que a mais nova deste blog está um bocadinho mais velha.

Wednesday, October 26, 2005

O Arco das Espumas

O mar rolou as suas ondas negras
Sobre as praias tocadas de infinito.

Sophia de Mello Breyner Andersen
em " O tempo dividido"

Hoje estou triste

Para quem me lê, dos que lidam comigo todos os dias. Sei que são alguns.
Hoje também estou em perda. Aquele post de há uns meses, sobre a reserva de eficiência, hoje não é verdade. Depois de 21 anos de serviço na Câmara onde trabalho, de 13 como Directora de Departamento, decidi mudar. Por vontade própria e contra outras vontades. Mas saibam que estou triste. Este bolg, desculpem-me,será algumas, raras vezes, diário. Hoje. Sinto-me um pouco perdida dos olhos dos que me apoiam e me gostam. Um pouco desconfortável por não saber exactamente o que me espera.
Desculpem o desabafo incongruente com a dinâmica de mudança que eu sempre defendi.
Tudo bem. Eu sei que nada ficará na mesma e que amanhã seremos outros, com ou sem vontades de mudança determinadas.
Mas hoje estou triste e parada sem energia e sem vontade.

Monday, October 24, 2005

Domingo de manhã


Arte conceptual por via do trabalho da Joana.
Divertimo-nos imenso a preparar uma fotografia. Não uma fotografia qualquer, mas daquelas que exigem muita preparação e engenho. Pinhas a arder, água vísivel, terra preparada e ar – puramente conceptual. Mais um Pedro ágil e bem disposto, para tirar a fotografia encomendada pela Joana, que tem vertigens. Tudo para retratar Alberto Carneiro – ele que não saiba da galhofa. Os quatro elementos e a Seiva, palavra escolhida pela Joana, para retratar a personagem e a obra.
Este mundo e estes domingos às vezes são particularmente interessantes e revitalizantes.

Friday, October 21, 2005

A pergunta pró-activa


Quando me encontro perante a dúvida do que devo fazer.
Quando a legalidade me leva para uma resposta que contradiz o bom senso.
Quando o socialmente ou politicamente correcto contradiz a minha verdade.
Faço a pergunta ao contrário: O que é que perco se proceder contra a lei, ou contra o social ou politicamente correcto? O que é que os outros perdem? Se a minha atitude vier a gerar um problema como o resolvo? Tem solução a posteriori?
Estas perguntas são de risco e induzem a acção. Não são defensivas, não me deixam instalar na paz podre. Tenho para mim que, o que não quero, é decidir distraidamente e sem pesar consequências. Isso é erro e negligência. Agora quando ajo conscientemente, estou segura, porque saberei, perante qualquer um, justificar a razão porque o fiz… e se for “condenada” será pela minha boa causa.
Dizia-me hoje uma minha colaboradora: " Pois é! Agora, não quero engolir um sapo e depois vou ter que engolir um elefante!"

Presidente interplanetário

Porque acabei de ouvir Cavaco Silva.
Muitos vão ser os comentários hoje, amanhã e depois de amanhã!
Não vou comentar conteúdos, não vou manifestar-me a favor ou contra.
Aliás, terão de repetir o discurso muitas vezes para eu descobrir alguma coisa.
Mas continua a ser o homem frio e tenso. Cada palavra parece arrancada de um poço de escuridão e profundidades insondáveis.Tem um ruído metálico de fundo que soa a qualquer engrenagem desconjuntada.
Nem a particularidade de o fazer no dia de aniversário do seu casamento torna este homem mais humano. Será sempre um extraterrestre.
Teremos um presidente interplanetário?

Wednesday, October 19, 2005

Temporada de Patos


Um filme num preto e branco mexicano, em que só nos apercebemos do ruivo do cabelo da personagem, quando, mais tarde, o declaram. Um filme cheio de subtilezas, variando entre o denso e as piadas non-sense, cheio de imagens que parecem quadros, impossível de descartar uma cena que seja (a não esquecer o discurso de Ulisses acerca do vôo em v dos patos e a cena final do quadro atado à mota, com uma corda, a passear pelas estradas movimentadas). Um despojamento de recursos, utilizando o mínimo possível, a fazer lembrar a comparação de Ilkka Suppanen: “Eu acredito que o Design é como a Poesia: absoluta e precisa com o uso mínimo de meios para obter um resultado máximo”. A história é simples e enche-nos em cada expressão. Uma montagem peculiar, em frames, com um incrível uso de silêncios e sons quotidianos. Eu e a Raquel saímos do cinema com o brilhozinho nos olhos, da música do Sérgio e conversámos o caminho todo para casa, acerca das imagens. Genial, até na banda sonora. Agarrem se puderem, Temporada de Patos.

Monday, October 17, 2005

Somos

Ainda de Alberto Carneiro:
Penso logo existo: não. Existo e por isso penso.
...ou o erro de Descartes, segundo Damásio.

Para os mais novos

Hoje, Alberto Carneiro relembrava à Joana o que dizia aos seus alunos :“Ignorante não é quem não sabe. Ignorante é quem não quer saber.” Esta é uma postura de vida. Não pudemos nunca saber tudo, porque somos ínfimos no meio de toda a informação que nos chega. Mas, sob pena de ficarmos ignorantes, não pudemos recusar saber mais, nem devemos resistir aos novos temas que se nos abrem. No mundo da informação, a desinformação é o nosso maior inimigo. E na sua maioria a informação que nos chega é superficial e pouco rigorosa, feita de falácias, de preconceitos e de estilos de vida ficcionados.
Por ignorante entendo não me perceber na minha relação íntima e individual com o mundo e com a natureza. Essa construo-a por referência a outros e com outros, por isso, também como ele diz, procuramos a informação para saber aquilo que não queremos fazer. Nada existe por si só, mas por referência, no campo da matéria e no campo das ideias.
"Quando um artista se lança na criação, só existe a sua necessidade de expressar-se enquanto indíviduo. Esta necessidade quase biológica tranforma-se numa força motriz contínua e poderosa." Gao Xingjian; Por otra estética seguido de reflexiones sobre la pintura; Editora: El Cobre
…e para os mais velhos a quem a novidade assusta!

Sunday, October 16, 2005

A Cultour em Santiago


Como vem sendo hábito ( aparte a modéstia) a visita da Culrour correu lindamente.
Porque as obras são excepcionais.
Porque o arquitecto Marco Rampulla é simples e acessível (desculpem se firo susceptibilidades, mas nem parece argentino).
Porque as pessoas são das mais variadas origens e gostam de arquitectura.
Um público de eleição.
Vivemos calmamente um dia diferente que vai ficar na nossa memória muito tempo.
Brevemente darei outras notícias.
Ficam duas fotografias feitas com o telemóvel, porque a minha fotógrafa falhou.

Thursday, October 13, 2005

Das Lágrimas

Das Lágrimas

A pequeníssima aranha assusta
a criança que eu estava a olhar,
e chora. “ Meu duplo filho,
não temas a imensa labuta
da caçadora de insectos.
Ela estende uma rede, tão frágil
que a podes romper com o menor dedo.
A menos que, antes do gesto, encontres
a beleza do tecido luminoso,
quando a aranha ofende o Sol
roubando-lhe alguns raios,
ou a beleza da água que ela retém,
como diamantes sem preço,
rosácea de lágrimas.”

Fiama Hasse Pais Brandão

Memória de momentos mágicos que se podem esfumar ao mínimo gesto.

linguagens

Ontem, Marco Martins, em entrevista a Carlos Vaz Marques na TSF, dizia que no início da sua actividade cinematográfica, nos primeiros dois anos, quando ia ao cinema não conseguia ver os filmes, olhava para eles como making of’s. Hoje uma terapeuta pela música, que foi ao programa da manhã da Antena 2, dizia que era preciso “ libertar a técnica para usufruir da música”. Dizia ainda que, embora com formação musical no Conservatório Nacional, se diferenciava dos colegas, porque quando ia ouvir um concerto, imaginava coisas em vez de analisar a obra.
Levantam-se questões interessantes e aparentemente contraditórias com o que penso. Provavelmente há vários estádios de maturação e entendimento de uma linguagem, mas será que só quando a dominamos completamente, somos capazes de retirar dela o verdadeiro gozo?
Será que quando desconhecemos completamente as regras de uma linguagem temos a mesma abertura para a acolher sem preconceito na sua plenitude? De uma forma menos completa mas até mais aberta e despreconceituosa? E será que se soubermos as regras ficamos presos a elas e não podemos interpretar a linguagem conforme o sentimento?
Dúvidas que partilho. Porém julgo saber que o caminho da procura e do conhecimento é irreversível, um vício que nos mantém vivos, pelo gozo de descobrir e precisar sempre de mais descobrir.

Wednesday, October 12, 2005

Nenhuma obra-prima é cobarde

Toda a beleza é previsível, como todo o passado. E exige-se um outro ritmo. Porque é na embarcação do medo que recordas o modo de construir outros barcos. Nenhuma obra-prima é cobarde.
Gonçalo M. Tavares

Tuesday, October 11, 2005

Um voto faz a diferença!

Teria também que dizer alguma coisa sobre as autárquicas. Não me apetece dizer nada de comum: “ Que desastre! Isto cada vez está pior! Ao menos o Avelino Ferreira Torres não ganhou em Amarante (triste consolação)! Temos o país que merecemos.”
Sim senhor! Este é o país que temos, eu sou cidadã eleitora. Votei na freguesia de Vermoim, concelho da Maia, Escola Preparatória Gonçalo Mendes da Maia, na mesa de voto nº 1, com o cartão de eleitor 1699.
Mas, … em Manteigas o PSD ganhou ao PS por um voto. Como é lógico e evidente o candidato do PS pediu para recontarem os votos. A Comissão Nacional de Eleições disse que não era possível porque as actas estavam todas assinadas sem ter havido, no acto, qualquer contestação.
Porque é que o que é lógico se torna impossibilidade? Somos escravos das leis, do papel?
Mas o lema denominador comum de todas as campanhas foi: “ Primeiro as Pessoas”. As pessoas não se enganam e um voto legitima uma equipe, com maioria absoluta, para governar quatro anos. Um voto faz a diferença!

Monday, October 10, 2005

Atárquicas 2005

Desculpem dizê-lo assim e desculpem ferir susceptibilidades, mas este país a votar É UMA MERDA! Fátima, Isaltino, Valentim e o Rio. Mais 4 anos no charco.

Friday, October 07, 2005

A casa e a música (partes III e IV)

Parte III ( dia 6 às 21 horas)
A casa estava cheia de um público mais formal e mais social, mas muito menos musical.

Il Giardino Armonico
Conhecia interpretações mas nunca os tinha visto ao vivo ou em qualquer filme. Se não estranhei o insólito da interpretação que se faz de ritmo e movimento, fiquei no mínimo presa à composição e movimentação dos músicos no palco. Os músicos tocavam de pé, excepto o violoncelo o alaúde e o cravo, por impossibilidade.
De bom gosto, mas quase a tocar o excessivo no que se refere a expressividade corporal. O Pedro diz que os músicos pareciam árvores frágeis ao vento. Polichinelos movimentados por qualquer teia invisível.
Com Viktoria Mullova. Achei muito interessantes as variações de intensidade que numa transição suave nos absorviam até ficarmos presos no mais ténue som do violino. ( Vantagens da acústica da casa?)

A música
Vivaldi, Sammartine e Haendel, todos da mesma época, mas Vivaldi muito diferente. Para mim de uma composição mais clara, mais sintética e mais directamente comunicativa.

Parte IV ( dia 7 às 13horas)
A casa estava virada do avesso. O concerto foi na sala 1. O público estava no coro. Viktoria virada de costas para a plateia e de frente para nós. Um público musical.

A música uma bolha. A ténue superfície transparente separou-nos do mundo e da casa.
Não foi empolgante, mas suave e sóbrio como Bach.
Agora vou regressar ao mundo. A crítica fica para quem sabe…para mim a oportunidade de entrar na bolha.

Wednesday, October 05, 2005

Dogville hoje











Nos últimos dias DOGVILLE tem sido, para mim, um recurso inevitável. A espiral de desagragação dos valores mais nobres do ser humano, a desintegração dos nossos sentimentos até que o lado mais ínfimo e mais negro, cresce desmesuradamente e toma conta do nosso comportamento, o inevitável (ainda que antiquado) maniqueísmo entre o bem e o mal…
Depois a transformação das personagens e de nós com elas quando somos confrontados com a vulnerabilidade e inconstância dos nossos juízos.
Filme profético e divino.
Profético, porque a cada momento presenciamos Dogville nas nossas relações e vemos impotentes, o fio débil mas incrivelmente forte que nos puxa para baixo! Down…down…down…
Divino, porque de uma lucidez exterior e altiva que nos faz sentir como marionetas perante o seu olhar.
( desculpem a composição, mas foi com muito custo que consegui inserir a fotografia. Falta a Joana para me ensinar.)

Tuesday, October 04, 2005

A terra é...

Porque nós temos justificação científica para fenómenos como o de hoje. Mesmo assim sentimos instintivamente, mais ou menos, como refere a Joana, a nossa primeira forma.
Então transcrevo este comentário passado, que me foi oferecido, porque hoje faz todo o sentido:

" A terra é uma grande ilha que flutua num grande mar e está suspensa por uma grande corda em cada um dos pontos cardeais que desce, desde a abóbada celeste, a qual é feita de rocha sólida. Quando o mundo envelhece e fica usado demais, as pessoas começam a morrer, as cordas quebram-se e deixam que a terra se afunde no grande mar e tudo volta a ser água outra vez.”
Como foi criado o mundo - segundo a tribo dos Cherokees - retirado de O Sopro das Vozes, textos de índios americanos.

Monday, October 03, 2005

Eclipse


Hoje o dia nasceu duas vezes. Eu vi as duas. As sombras eram feitas de unhas de sol. Eu e a Helena eramos dois borrões escuros no chão. A manhã parecia vespertina. Senti-me reduzida ao meu instinto, a minha forma primeira, ao essencial. Eclipse.

Desculpa antecipar-me!

Perguntaste: “ Tu viste mãe? Foi tão lindo! E as sombras? Era tão estranho!”
Eu arrepiei-me. Sim, eu também tinha visto. Sozinha, na rua e na sala. Não tinha reparado na diferença das sombras.
Quando falei contigo percebi que o elo estava fechado. Nós e o universo. Nós no universo… e nós percebemos que só encontramos a nossa verdadeira dimensão quando nos entendemos neste mundo infinitamente maior e infinitamente mais pequeno do que nós. Por isso gostamos da física e da filosofia. Por isso sentimos no corpo, como animais que somos, o incómodo e a compensação, de ter vivido este eclipse.

Pina Bausch


Tem presente essa dimensão humana nos olhos profundos, que se afastam do mundo para a distância de um recolhimento interior, na denuncia dessa hesitação do vocábulo que possa substituir o gesto e tornar transparente o seu sentido profundo na ausência do bailarino. É um olhar da mesma ordem de complexa vulnerabilidade da vida que aborda em algumas das suas peças. Quando se solta o discurso, normalmente sobre processos ou sobre a dificuldade do dizer, gesticula as belas mãos magras num novelo de movimentos que ondulam e desenham no ar o significado de todas as palavras que não diz.

(Actual-Expresso; 1 de Outubro de 2005)

Sunday, October 02, 2005

Trabalho e Arte

"Nunca nutri especial admiração por Pedro Burmester como pianista. Acho-o dotado desde que o ouvi na aula magna da Reitoria da Universidade de Lisboa no concurso Vianna da Motta em que não foi atribuído o primeiro prémio. Depois desta ocasião escutei o pianista inúmeras vezes e sempre me soube a pouco, creio que Burmester é um superdotado, um intuitivo, para ele o piano é fácil. No meu entender este é o seu principal problema, a apreensão rápida das obras a fogosidade mas pouco amadurecimento, pouco estudo, quando as coisas lhe saem bem o concerto ou recital é excitante mas pouco profundo, quando lhe correm mal é uma trapalhada."

Henrique Silveira no seu blog “ Crítico Musical”
O problema é sempre o mesmo em todas artes. A facilidade é inimiga da profundidade e da perfeição.

Saturday, October 01, 2005

O Vazio da Ausência

"... e de novo acredito que nada do que é importante se perde verdadeiramente. Apenas nos iludimos, julgando ser donos das coisas, dos instantes e dos outros. Comigo caminham todos os mortos que amei, todos os amigos que se afastaram, todos os dias felizes que se apagaram. Não perdi nada, apenas a ilusão de que tudo podia ser meu para sempre".

Quase poderia transcrever este pensamento, extraido de um qualquer texto de Miguel Sousa Tavares, que me foi enviado por uma amiga, sem nada dizer.
Mas não quero.
Porque precisamos de guardar objectos, de pretender possuir pessoas, para nos equilibrarmos? Porque temos dificuldade em conviver com a ausência? Porque fomos educados para uma economia de mercado, na qual o usar e deitar fora, é o fundamento da criação de riqueza? (Ou às vezes até o deitar fora sem usar, como modo de criar valor). Porque nos criam necessidades que não temos?
Tenho vindo a perceber que é mais compensador descolar do ilusório real: uma fotografia, um objecto ( ou até mesmo uma pessoa), para o reinventar com as asas do meu afecto, da minha recordação, do meu amor.