“(…) Era tarde quando finalmente desejaram boas-noites uns aos outros, e mesmo então, com um luar tão bonito lá fora parecia uma pena ir para a cama; portanto, ele desceu até ao tanque e tomou um banho silencioso e gelado, deixando as asas bracejantes da água passarem por ele como chuva. Cerrando os olhos, ele tinha a impressão de ver o preto magnetismo da luz negra que irradiava da terra, quer no meio dessas árvores e vinhedos quer das garrigues escalvadas e pedregosas ou das colinas arenosas com os seus vales xistosos a desagregarem-se. No meio desses errantes dormitórios de cacos, Van Gogh tinha procurado o demónio do seu negro sol do meio-dia – e encontrara-o na loucura. Só quando uma pessoa lá se encontrava conseguia compreender até que ponto a obra do pintor era uma expressão fiel daquela terra. Ele começava a compreender a diferença entre as duas artes, a pintura e a literatura.
A pintura persuade estimulando a mente e o nervo óptico simultaneamente, ao passo que as palavras implicam, significam qualquer coisa mesmo aproximada e são influenciadas pelo seu valor associativo. O encanto que exercem visa dominar as coisas – são os instrumentos de Merlin e de Fausto. A pintura é desprovida deste tipo de perfídia – é a celebração inocente das coisas, procurando apenas inspirar e não coagir. (…)"
Durrell, Lawrence; "Lívia ou O Enterrado Vivo"; Difel; pág. 236
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5 comments:
Van Gogh, para lá do episódio da orelha cortada quando pairava sobre o penúltimo abismo, mostrou-se enlouquecido na tela. A tinta amoníaca e demoníaca, matéria efervescente da desordem convulsa que lhe afluía ao olhar, fê-lo carrasco embaixador da sua mesma natureza. A arte susteve-o – considera-se que fez a transposição do impressionismo para o modernismo - e permaneceu quimérico sobre algumas ideias espectrais da enunciação estética. Se à vertigem associássemos uma cor … seria o amarelo, presente em todas as suas telas.
V
A palavra? A palavra é a nossa conjuntura, produz-se e desencadeia-se no hemisfério mais evoluído da nossa arte voluntária. Nós somos a palavra, a sua consequência, se a dizemos ou se a suprimimos. Por ela, perante ela, mais do que uma capacidade comunicante, irrompe a nossa capacidade aumentada de, algures no longo enredo, sermos.
Somos o que a palavra nos permite, e consentimo-nos pensar e sentir a partir da potencia de cada vocábulo ^ nem aquém nem alem deles ^ porque o território que eles não designam, é de todo inacessível. Lá é, digamos assim, o indizível, e não podemos pensar o indizível. Aliás, indizível descreve o que é intocável e, no entanto, mesmo a suposição ou a hipótese de existir qualquer coisa fora da palavra, ou que não tenha sido ainda inaugurado por ela é, só por si, não apenas crível como provável. Porem, enquanto a palavra o não encontrar, nós não o encontraremos. Enquanto não pertencer à palavra, não nos pertencerá. Deus existe porque o nomeamos, antes de tudo ele é a nossa capacidade de o nomearmos, mesmo que seja uma entidade antagónica dessa que descrevemos ou que, na verdade, seja mesmo inexistente. Um vazio é a palavra vazio quando é dita, e não pode ser outra coisa, embora o vazio, o vazio integral, o vazio espacial por exemplo, como quer que seja a seu nexo e a sua génese, na hipótese mais arrojada, será ainda um facto linguístico. Tudo é mimético da palavra, e não o inverso como parece ser. A pintura, a dança, a música, na soberania sobre o nosso desígnio, não se comparam com aquela que a palavra propaga. E a palavra começou por ser um urro dito e um sulco escrito…
P
Mas podemos sentir o indízivel. Essa é a nossa, a minha dor e a minha impotência. Porque muitas vezes não encontro palavras para aquilo que quero comunicar, que me é essencial comunicar. Porque se sou uma só e única, faço-me pelo diálogo e pela partilha, gosto de dizer o que sinto quando é bom, muito bom; preciso de dizer o que é mau, para o exaurir e expurgar. A superação das más experiências são molas que nos impulsionam e, através da comunicação, permitem aos outros, de quem gostamos, superar os momentos mais negros com outro ânimo.
Voltando ao princípio, como não sou escritora, nem poetisa, como não sou pintora, como não me exprimo pela dança ou pela música, resta-me partilhar os momentos sem palavras que permitem o sonho, que abrem a alma, ... ou por palavras para quem souber através dos signos que alinho recordar momentos e estados que já viveu.
Mas já chorei a ver o "Nascimento de Venus" de Boticelli, ao entrar na Capela Sistina ( no meio de multidões de turistas)ou numa despedida de comboio em Campanhã.
O silêncio é tambem uma palavra, a palavra sem som!
S
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