Thursday, June 22, 2006

pergunto

“ Pergunto, para mim, se a escrita tem passado?”
Hoje à hora de almoço, almoço colectivo e diferente do habitual no género e no lugar, lembrei-me desta frase. Relaciono-a com uma crónica de Miguel Esteves Cardoso, que li há tempos, em que ele referia como um mal dos portugueses é acharem que, perante a comunicação de uma ideia ou de uma experiência de outros, o que eles dizem ou vivem é exactamente aquilo que nós poderíamos ter dito ou vivenciado. Chocou-me. Porque sinto realmente e às vezes, não muitas, que a escrita não tem passado. Aquilo que leio é meu, na presente hora, minuto ou segundo em que o faço… e dou graças por alguém ser capaz de encontrar as palavras que me preenchem. Não poderia ter sido escrito por mim, porque infelizmente não consigo encontrar o modo pleno da expressão que traduza os sentimentos. Talvez que, para aquela pessoa que escreveu, a sua escrita não tenha o significado profundo e pleno que tem para mim. Mas é assim, a palavra deixa de ser nossa quando comunicada, os sentimentos vivem-se na comunicação.

2 comments:

Anonymous said...

É provável que haja uma heráldica de sentimentos que une todas as almas contidas na extensão de mundo entre a Polinésia e Paris, que as une numa paridade intrínseca. Refiro-me a uma espécie de itinerário ecuménico do sentir que perpassa a história do homem, que é infra-cultural e infra-sociológico, que só se debela e suplanta no “alto” poético das artes. É inesperadamente fácil imaginarmos o que será a tristeza de um Massai. Um homem triste sente dentro de si um abismo análogo, seja rico ou magro, pobre ou gordo, novo ou velho. E nem precisamos de detalhes sobre a origem da sua tristeza. Um grito bastará, ou a palavra, ou a sua aguda omissão. Na alegria, o caso será idêntico, e podemos até presumir a mesma expressividade. E pode ser que um homem fique triste com a morte de outro ou que fique contente com tal morte mas, essa dor ou esse júbilo, retirados da sua causa, são estados universais. È por isso que posso ser solidário com a dor ou a angustia de outro homem mesmo não conhecendo a sua identidade, sequer a sua pátria. Talvez seja esse mesmo “sistema” universal a permitir que a palavra de um poeta russo (mais intensamente a metáfora que a contenha) entre em mim para representar ou iniciar o sentido que lhe está associado. E, bem entendido, esse sentido não traz instruções específicas, ganha-as quando encontra um intérprete que através delas se converte ainda mais em si mesmo, depois de descoberto tal império. A palavra é o império máximo do Homem, alguém o disse. Julgo mesmo que o que sentimos em grande parte do dia se deve a estímulos externos que colidem connosco continuamente, e que é raro podermos decidir o que queremos, propriamente, individualmente, sentir. Quando muito podemos recusar a comunicação e afastarmo-nos para um vértice temporariamente remoto, até que o sino de uma catedral, o slogan de um cartaz ou o próprio silêncio nos induzam qualquer sentimento fortuito. Sós, absolutamente sós, privados da palavra-outra-que-nos-chega, estamos, literalmente, condenados á loucura. Em tal situação, uma rápida sincope invadiria a nossa alma de anzóis negros.
Nunca nenhuma palavra se esgotará na nossa boca falante ou espantada, porque haverá sempre quem seja capaz de a reabrir ao imprevisto, mesmo que o faça inadvertidamente, ou sempre o faça assim se concluirmos que está em quem a colhe o propulsor da sua excelência significante. Se, por exemplo, leres todos os dias a frase de H.H. «…as mulheres sopram a lua pela boca dos púcaros…» alguma vez esgotarás totalmente a sua significação? Poderias reenvia-la a outrem e de novo se colocaria a mesma pergunta. E todos os homens do mundo a poderiam usar em simultâneo sem que conseguissem extingui-la, esgotá-la definitivamente. Porque o sentir humano, sendo interpretativo, é todavia excêntrico em relação á pronunciação da palavra, é adaptativo aos instantes que o tempo goteja. E a cada instante, milhões de probabilidades se escrevem para dizer o que todos quereríamos ter enviado ou guardado em invólucros-pálavra. A palavra, portanto, neste modo de entender, seria um envelope ou um baú, um alvéolo da deriva ou da permanência, a expectativa pioneira do nosso próximo sentimento. Nesse caso diríamos determinada palavra, não tanto pelo que acabamos de sentir mas para causar o nosso próximo sentimento, mesmo quando este é apenas o ajuste daquele que acaba de nos acontecer. Então a palavra «dor», dita pela primeira vez, não revelaria a dor e a palavra «alegria», dita pela primeira vez, não revelaria a alegria mas, cada qual, seria o íman do sentir que designa e, logo depois, a sua maior probabilidade. Estaria assim a nossa capacidade de sentir dependente de outra capacidade, a de dizer, e, não tenho a certeza, embora cada vez mais me pareça provável, o dizer não é latente em nós, i.e., não deve ser designado voz, mas a própria alma ou força que não sabemos definir. Que desordem, quando as palavras misteriosamente se atrasam e nos deixam, momentaneamente, sem palco, ou apagados em cima dele!
Talvez não, talvez o processo seja bem diferente, talvez só digamos o que nos convém!



P

maria said...

Percebi e concordo. Também assim penso, todos os dias. Independentemente do que o que as palavras dos outros nos querem dizer, elas têm sempre um novo significado conferido pela nossa história e pela nossa experiência. Mas também, independentemente disso, os sentimentpos são universais por mais ou melhores descrições que encontremos, prevalecem a qualquer definição. Um dia uma, outro, outra. Essa é realmente a linguagem universal em que todos os homens se encontram, ainda que caldeados por culturas, línguas ou história diferentes. Todos somos felizes e todos sofremos, todos temos ciúmes, invejas e todos somos magnânimes e tolerantes.Porém às vezes duvido que tenhamos sido criados para o Paraíso.