Saturday, December 31, 2005

1º Prato


(MoMA; 30 de Dezembro de 2005)

Friday, December 30, 2005

Entrada



Aperitivo


(post feito num quarto da 31st street)

Wednesday, December 28, 2005

Até lá

Agora estamos mesmo de partida. Para a eventualidade de não conseguirmos dar notícias de Nova Iorque, só dentro de oito dias estaremos de volta. Espero que, com novidades, estórias para contar e outras que serão contadas, ou não, pela vida fora. Espera-nos um dia comprido, vamos conquistar cinco horas que devolveremos no regresso. Não há volta a dar.

Tuesday, December 27, 2005

Sempre de partida

Estranhamente calma e de férias. Aproxima-se o dia da viagem. Não tenho medo de andar de avião, ainda que a ideia de que durante horas estaremos sobre o atlântico me faça sempre alguma espécie. Quando fui ao Perú era não só o Atlântico mas também a floresta amazónica, um outro mar verde e impenetrável.
Não preparo a ida para além do essencial e também não arrumo nada do que fica. Porque a vida é sempre uma permanente viagem e cada lugar deve estar sempre pronto para deixar. O que nos custa é esta consciência de que tudo é efémero por mais essencial que se afigure no nosso presente. Mais do que as coisas os sentimentos. Um sentimento que hoje sentimos vital amanhã pode apenas ser uma recordação, sem qualquer dor ou mágoa. Mas hoje pensar nisso dói, uma dor por antecipação da perda, que provavelmente nunca se terá. Uma dor por pensar que pode até nem doer. Uma dor do futuro.
Um modo de tomar consciência da nossa insignificância.

Saturday, December 24, 2005

Desejo de Natal

À Avó

Ficou vazio o teu lugar à mesa. Alguém veio dizer-nos
que não regressarias, que ninguém regressa de tão longe.
E, desde então, as nossas feridas têm a a espessura
do teu silêncio, as visitas são desejadas apenas
a outras mesas. Sob a tua cadeira, o tapete
continua engelhado, como à tua ida.
Provavelmente ficará assim para sempre.

No outro Natal, quando a casa se encheu por causa
das crianças e um de nós ocupou a cabeceira,
não cheguei a saber
se era para tornar a festa menos dolorosa,
se era para voltar a sentir o quante do teu colo.

Maria do Rosário Pedreira
em "Natal...Natais"
Oito séculos de Poesia sobre o Natal
Antologia de Vasco Graça Moura

Friday, December 23, 2005

Tardio Advento

Cheguei finalmente ao Natal.
As velas do Advento continuam por acender. Não fez sentido.
As prendas, compradas por empreitada. Agora vou compô-las. Respigar.
Este é o verdadeiro trabalho de Natal. Escolher o que faz sentido, juntar, redistribuir, para voltar a dar. Dar.
A família está novamente junta. Soube-me especialmente bem rever a Joana e estar com ela, excessivamente constipada e com saudades, já, de Aveiro, bom sinal.
Hoje começa o meu Natal. As lembranças de um ano cheio de mudanças que eu compilo, a partir deste momento, em alguns dias que auguro felizes.
Para todos.

Wednesday, December 21, 2005

Amanhecer

O título fui eu que dei.
Deixo este pequeno poema, leve e juvenil, cuja autora é uma recente descoberta nossa.
Na impossibilidade de o publicar ao amanhecer, faço-o no início da noite.


As luzes pestanejam
Verde, azul, vermelho
Beijam o vidro.

Eu arregalo os pés
Acordo os braços
Enquanto o dia boceja.

Olívia Rosmaninho

Sunday, December 18, 2005

Há dias

…que ultrapassam as barreiras do tempo e se prolongam no máximo da vivência. Conversas que se desfiam com diferentes personagens que igualmente me desafiam para o infinito. Um tema, um facto, uma pessoa, uma coincidência. Há catorze anos nasceu o Pedro. O Pedro é muito inteligente. Conversa connosco qualquer coisa e desafia-nos. Respeita a nossa individualidade… e provoca-nos, entende-nos na nossa sede de conhecer.
O João, aqui ao lado navega por Time Square, onde estaremos daqui por catorze dias.
Há pouco, em conversa de pós-jantar, concluíamos que a chave para ultrapassar a barreira do tempo e do espaço está na comunicação. Cada vez o tempo é maior, infinitamente grande porque cada vez é mais pequeno, infinitamente pequeno, porque mais denso. Hoje um ano corresponde a um século de umas décadas atrás. Com o Francisquinho, há uma semana, falava disso mesmo, ao recordar o Perú, em que a falta de comunicação, isolou séculos e parou-os no tempo.
O espaço é cada vez maior, porque cada vez mais pequeno, também. A velocidade, que desafia o tempo no espaço, já não é vivivel para um humano. O João dizia-me que as velocidades possíveis na fórmula um são impraticáveis porque um humano desmaia se as experimentar. Ontem, eu e o Zé, concluíamos que o presente não existe, porque o tempo se ultrapassa a ele mesmo, em cada instante. E também que o vazio é fundamento da matéria. Hoje eu e a Emília líamos a vida no presente, passado, futuro.
A ficção científica de ontem é hoje passado.
Existimos? Ou talvez não.

Friday, December 16, 2005

Agradecimento

"É uma actividade fascinante, esta, a que se entregam algumas almas mais melindrosas.
Toda esta perseverança e diligência, este comércio inocente e magnífico de figurações e símbolos, este ritmo nascido de mãos cheias de memória, talvez seja tão-só magia sem segredo, um reverenciar uma divindade de que até o nome já se esqueceu, uma nostalgia de coisas elementares sem mácula. Talvez… Seja como for, é perturbante que um homem em certas horas, e não das menos sombrias, se empenhe até alucinação em recriar umas frágeis raízes que o mar deu à costa, pedras de um rosa delicado, folhas onde o oiro da manhã se refugiou, pálpebras ainda com restos de sono." (…) e Eugénio de Andrade continua em “Tudo é só um puro dizer no tempo” a desfolhar sentidos e a evocar almas de homens que nos oferecem a paz, a luz, ultrapassando o tempo. Ele e outros, outros por ele, às vezes têm o dom mágico de nos transportar para este estado de pura harmonia, indizível e intemporal que, porque vivido uma vez, nos atingiu o coração.

Wednesday, December 14, 2005

Publicidade

Ora desculpem. É só para dizer que a mais velha deste blog, amanhã fica um bocadinho mais nova. Como não tem jeito para a composição gráfica digital, desafia a mais nova a fazer uma composição. Apela ao seu bom gosto e à sua imaginação…e espera ansiosamente que ela, a mais nova, leia este post. Seria bom sinal, depois de tantos dias arredadas e evasivas. Mas…alguns saberão...que para já não é sinal de desistência, apenas de outras confusões ou ilusões.

Sunday, December 04, 2005

ruínas

Hoje, numa festa de família alargada, reencontrei os meus tios e primos que já não via há muito. Fez-me pensar.
Reencontrei-os no passado e não os reconheci no presente. Quebrei laços e com isso perdi um pedaço de história. Isso não me preocupa minimamente nem me faz sentir mal. Só que faltavam lá pessoas, as pessoas do passado que faziam parte da essencialidade daquele quadro. Sem elas o quadro não é o mesmo. Por isso tive saudades dos meus avós, muitas saudades. A continuidade da relação teria permitido a substituição: os avós morrem e são substituídos pelos pais, para que o tecido se reajuste e remende os buracos que se sucedem ao desaparecimento. No meu caso os buracos continuam lá, bem visíveis, bem presentes, ainda bem. Não preciso de fotografias para os lembrar. Basta-me o quadro desfeito desta existência.
Porque temos sempre a necessidade de substituir para recompormos o nosso quadro afectivo? Porque lidamos mal com a ausência? Porque inventamos outros destinos para os que desaparecem? A nossa tradição cristã empurra-nos para a ilusão de uma outra vida para que os mortos não morram e para apaziguarmos a nossa pouca aptidão para lidarmos com o nosso certo destino.
Isto leva-me a um texto de Henry Miller, sobre a ruína e o modo de com ela lidarmos:

“Um dos fascínios das ruínas é que sugerem ou revelam sempre a configuração original ou, por outras palavras, a intenção. No meio da maior devastação temos a certeza de encontrar pedaços isolados de perfeição: um arco, um pilar, uma cúpula, um pedaço de pavimento. O trabalho de restauro não só dissipa o charme e o mistério como produz o efeito, um simulacro, de rigor mortis. Nunca nada parece o que foi. O tempo é o mestre apaixonado da decomposição. A criação e a destruição são gémeas, como o foram o amor e a justiça.”

Viagem a uma terra antiga, in Viragem aos oitenta; Henry Miller; Editora Fenda; Lisboa 1999

Friday, December 02, 2005

SIDA


Não quero fazer grandes comentários, é apenas isto. Um grave problema inter-geracional.

Magnífico feriado

Em casa dos meus pais, estes eram os melhores feriados: feriados sem missa.Aqui em casa, esta particularidade não faz qualquer sentido, porque todos os feriados são sem missa.
No entanto este foi um excelente feriado. Fiz tudo o que gosto: li, fui ao ginásio, tomei um óptimo banho a seguir, fiz o almoço calmamente, ouvi música, trabalhei.
O almoço merece destaque. Contra o costume, em dias como este, decidi fazer almoço. Sentamo-nos os quatro à mesa, conversamos, rimos, divertimo-nos. Como foi diferente de quando comemos apenas “qualquer coisa” informal e rapidamente! Comer, independentemente da qualidade e da quantidade, é um acto social e contribui mesmo para comuniquemos.
Isto não é sempre assim tão harmonioso. Às vezes a mesa é local de conflito, de discussão, de não entendimento. Mesmo assim lugar de fundamental para o nosso equilíbrio e crescimento conjunto.
E se juntarmos um copo de um bom vinho tanto melhor.

Tuesday, November 29, 2005

Beleza e Comunicação

Hoje estava a ouvir o Ritornello na antena 2 e o Jorge Rodrigues pedia a um compositor, de que não me lembro o nome, que explicasse a música que seguidamente ouviríamos. Ele disse que não o fazia, porque se a música não fosse capaz de se explicar por si mesma, então tinha falhado.
Lembrei-me de um pequeno e delicioso texto que li ontem, de Gao Xingjian, todo ele intenso de conteúdo e sentido. Escolho no entanto uma passagem que tem tudo a ver com o que diz o compositor.
“ Suprimir el sentimiento estético individual en provecho de explicaciones no contribuye en nada al desarrollo de la individualidad en la creación artística, pues, en ese caso el individuo se hunde en el último concepto artístico de moda. Desde el momento en que el artista intenta ser el primero en expresar la voz de su época, en hablar de su época, debe recurrir al lenguaje más común, pero cuanto más común es el lenguaje, más vacío resulta. Entonces el discurso non tiene nada de novo que expresar, solo tiene una apariencia de discurso.”

"La belleza está en el instante"; Gao Xingjian; Em "Por outra estética seguido de relexiones sobre la pintura"; El Cobre Ediciones, S.L. ; España 2004

Sunday, November 27, 2005

O Fiel Jardineiro- notas sobre o filme

Fui à procura do meu lugar em África. Aquele lugar quente, feito de luz dourada onde, para além do essencial, só existe lixo. Percebi que o lixo é o nosso, o do mundo desenvolvido, exportado para África por interesse e pretenso altruísmo. Já o sabia. O Pedro saiu do filme e perguntou-me: Mãe, isto é mesmo assim?
A leitura que faço para mim, não é tão benevolente: A verdade da vida não é tão clara, a divisão do mundo entre bons e maus, parece-me aqui demasiado linear. Tessa, um anjo; Justin um amante, no sentido em que o amor dá força e sentido a tudo, até à própria morte. Ele vai ao encontro dela deliberadamente, prepara-a continuando o projecto que ela deixara inacabado, redimindo-se das suas pequenas infidelidades a Tessa.
Por outro lado a construção da narrativa, interessante e capaz de nos prender, possui alguns ruídos que nos desviam a atenção, prejudicando a leitura do encadeamento dos factos que constituem o triller, que adensam a estória, mas que lhe retiram força.
Encontrei o meu lugar em África, bem no seu interior, onde nada existe para além das pessoas, com insignificantes roupas que as protegem, fome, doença e o lixo exportado do mundo global (neste caso medicamentos fora de validade e novas drogas para teste) para ajudar este outro mundo global que é África.

Delírio de mar e pátria.


Temos andado a correr para o Museu Marítimo de Ílhavo, duas vezes por semana, à custa de um projecto acerca da pesca do bacalhau. Sinto uma proximidade às ondas, ao mar, às redes, à pesca, ao trabalho árduo quase comparável às directas. Sinto uma proximidade à vida solitária do pescador sozinho no seu dory. E uma proximidade à nossa tradição, à nossa nação. É pá, desculpem, é do sono. Não durmo desde as 9.30 de ontem. São 7.24. Mas isto é uma bela fotografia, se é!

Wednesday, November 23, 2005

Os passarinhos

O Pedro tem quatro passarinhos numa gaiola, daqueles que lhe deu o Sr. Albino. Dois bengalins e dois mandarins. Estão na cozinha enquanto não lhes arranjo novo poiso. São muito vivos e brincalhões. Mas também são muito porquinhos, sujam tudo à sua volta.
Hoje depois de jantar, já tarde, estava na cozinha a tomar café e a observar os passarinhos… a namorar. A namorar no Outono. O bengalim macho com a bengalim fêmea e o mandarim macho com a mandarim fêmea. Não se misturam. Encostam as cabeças e “beijam-se” com os biquinhos duros. Os dos mandarins são vermelhos e os dos bengalins escuros. À noite juntam-se todos em linha no poleiro, nunca intercalados – dois bengalins e dois mandarins, mas os quatro completamente encostados. Encolhem as cabeças nas penas e adormecem. A graça deles advém da sua vitalidade e dos movimentos muito entrecortados e frenéticos. Piam só. Um piar grave, mas sonoro.
Mas certo, certo, é que namoram no Outono.

Monday, November 21, 2005

Outra lógica

Acabei de ler os jornais de fim de semana. Algumas notícias misturam-se na minha cabeça. Cabo Verde, Brasil, AMI, Banco Alimentar Contra Fome, minorias, colapso da economia mundial,…. Lógicas que precisam de uma outra lógica que não a da desregulação. Essa outra lógica que cresce nos contra-poderes que surgem, também eles, às vezes já ameaçados pela do poder. Mas isso não nos pode fazer desacreditar das nossas qualidades humanas. São sinais de contra-poder a recuperação dos excedentes alimentares recusados pela economia de mercado para a confecção de alimentos cuja venda revertem a favor do Banco Alimentar contra a Fome, como o são as iniciativas da AMI, transformando imaginação em solidariedade.
Mas porque é que esta lógica, que deveria ser a lógica da vida, é hoje, como ontem, uma lógica de contra-poder? Parece evidente, para qualquer mente saudável, que não faz qualquer sentido deitar fora alimentos quando há milhões a morrer à fome. Não me esqueço da bem conseguida imagem do Live Aid, quando puseram a multidão a estalar os dedos de três em três segundos, significando cada estalar uma pessoa a morrer à fome. Em cada três segundos morre uma pessoa à fome! E não me venham com discursos de globalização da economia mundial, de garantias de preços de mercado ou de cotas, ou de qualquer outra coisa.
Reivindico a minha ingenuidade, os meus sonhos de ser missionária, a minha condição de humanista outsider, para relembrar à Joana e ao Pedro e a muitas Joanas e Pedros de qualquer idade, que o mundo não é só aquele que lhes é dado viver. É preciso ver mais longe e sobretudo ambicionar ser solidário a qualquer preço.

Friday, November 18, 2005

E mais um poema

Estas sombras que nos encaixam
Em paredes, em pedaços,
Turvam-nos os dias em horas
De amarguras, de demoras.

Estas sombras que morrem
Sobre os sonhos dos que dormem
E o mundo não recolhe.
Só mente, só acolhe.


Olívia Rosmaninho

(É que, ao que parece, hoje é mais um dia com uma noite mal dormida e muito trabalho para fazer, enfim.)

confidências

A partir de segunda-feira estarei noutro lugar.
A disponibilidade a mesma. O lugar sabido. Convoquem-me sempre.
Essa será a circunstância da minha vida…de resto contínuo, como sabem, a mesma.
Sonhadora, romântica, efabuladora, mas sempre com muitos por perto.
Este tom épico, não vem só da Íliada que leio com gosto…mas de mim que exaltada e confiante continuo a acreditar que o que nos move é o amor e a confiança de que não somos indiferentes.

Thursday, November 17, 2005

Balanço

Desculpem o desmazelo. Não é preguiça, apenas impossibilidade física. Incapacidade de lidar com o tempo material. Para quem, como eu, sempre defendeu a verticalidade do tempo, e por isso o tempo infinito, esta situação é imperdoável ou, no mínimo, enganadora. Infidelidade.
Como também ainda não tenho certeza da importância deste espaço para outros, sinto que posso ceder a outras paixões e esquecer este lugar. Por outro lado acredito-o como uma ponte que nos leva para universos insuspeitáveis.
Digam de vossa justiça.

Monday, November 14, 2005

exactamente

Encontrei este poema de Torga no "Dias com árvores". Não sei o título, não estava lá. Vou procurá-lo. Não gosto desta falta de rigor, desta maneira de se usarem as palavras dos outros sem correctamente as referenciar. Mas hoje dão-me jeito e por isso transcrevi o poema na forma em que o li, ali.

Tarde triste.
É o Outono doente que começa.
Cada folha parece que tem pressa
De morrer.
Madura e fatigada, a natureza,
Roída por não sei que súbita incerteza,
Até nos frutos quer apodrecer.

E há um desalento igual dentro de mim.
Uma renúncia assim
Calada e conformada.
Perdi o gosto verde de cantar,
A emoção vem à tona e degenera,
Infecunda, a negar
As muitas flores que dei na Primavera.

Miguel Torga, Diário XIV, 1984

Thursday, November 10, 2005

...não é só arquitectura

No fim de semana passado li um testemunho de Júlio Machado Vaz na revista Linha que acompanha a edição do Expresso que me tocou. Ele transcreveu-o no seu blog, com o título"Agradecimento mais do que mercido". Sugiro que o leiam. Se tiverem a revista podem perceber um pouco mais.
Eu vou de fim-de-semana, sem Internet. Saboreiem bem o texto.

Wednesday, November 09, 2005

Maria do Céu Guerra na Fábrica

Foi com surpresa que me deparei, Segunda, dia 7 de Novembro, numa das paredes do meu Departamento, na Universidade de Aveiro, com um cartaz acerca de um Ciclo de Poesia, sobre os 4 Elementos, na cidade de Aveiro. Logo, os meus olhos deslizaram um pouco mais e encontraram um nome conhecido: Maria do Céu Guerra.

Assim, nesse mesmo dia, às nove e trinta da noite, caminhei até à Fábrica, com a Helena e o Daniel “caladinho”. No caminho, ainda me cruzei com a Carolina, que vinha da print-shop, com o último projecto que nos foi proposto impresso. Dei-lhe a opinião que ela queria ouvir. Quando cheguei à Fábrica já a Maria do Céu se movia e contava poemas, deixando que eles se mexessem no seu corpo, que o tomassem, que o moldassem. Desde logo, achei-lhe a voz muito mais bonita, muito mais grave, muito mais sincera. A telivisão estraga as pessoas, torna-as pouco intensas. Seríamos quarenta na sala? Logo passei para a fila da frente, para que ela me fitasse os olhos em alguns versos, para eu não perder os pormenores dos movimentos. Quarenta com o mesmo gosto, a mesma entrega? Fiquei meia hora a conversar com ela, no fim. Tem uns olhos que parecem o mar. Quarenta a ver na poesia a única salvação? Quero deixar tudo. Deixar tudo pela Poesia. E por isso já mandei um email. O princípio.

Tuesday, November 08, 2005

De Sophia

Devagar no jardim a noite poisa
E o bailado dos seus passos
Liberta a minha alma dos seus laços
Como se de novo fosse criada cada coisa.

Sophia de Mello Breyner
Arte poética

Declaração

Continuo a querer os mesmos amigos, as mesmas conversas, os mesmos cafés, as mesmas rotinas. Se elas se mudarem é porque nós, eu convosco, já não precisamos delas, sem drama, sem dor. Continuo a acreditar nos mesmos projectos e a combater militantemente por eles. Eles que são: realizar-me como arquitecta que faz arquitectura pondo os Arquitectos a fazer Arquitectura; realizar-me como arquitecta enquanto divulgadora de uma profissão e de um modo de a exercer com paixão; realizar-me como mulher que acredita na condição feminina, com especificidade e com igualdade de oportunidades; realizar-me como educadora, que acredita na juventude responsável e sem preconceitos raciais, religiosos, sexuais. Que combata a pobreza e a discriminação e que assuma uma postura de vida que assenta na dádiva sem retorno. O único retorno, será porventura o da amizade ou o de percepção de que pela nossa acção alguma coisa mudou para melhor. Mesmo assim teremos que ter humildade para aceitar que a nossa vontade e a nossa crença pode ser vã. A verdade não é única. Verdade/valor universal é apenas o respeito pela dignidade de cada homem.
Concluir que uma alteração circunstancial modifica relações fundamentais não era, até hoje, para mim evidência. Não estou disposta a aceitá-lo a não ser pela liberdade de esquecer aquilo que ingenuamente julgava verdadeiro.

Sunday, November 06, 2005

Sábado sempre

Sábado, Sábado, Sábado…
Cá em casa cabe música, cabe diálogo, cabe…
Cá em casa quase não cabemos nós.
Mas cabe trabalho, jantar (fazer jantar) leitura.
Cabe natureza, folhas, orvalho, cor de Outono.
Cabe a angústia da segunda-feira também.
A certeza de que o sábado não cabe na segunda-feira.
A angústia de que vou subir aquela escada para um mundo que não entendo.
…e onde suspeito não vou poder descobrir o meu canto…
O meu sábado. O ilusório real.

( A Joana está copiosamente bonita. Rosada. Os olhos negros e vivos. O som do teclado do computador, a duas, mistura-se. A boca é uma flor. Ela é a Joana eu, a sua mãe. A música de fundo - Ryuchi Sakamoto)

Alberto Carneiro em tinta vermelha


Alberto Carneiro de volta às nossas manhãs de fim de semana. Homemade Conceptual Art, baby! Hoje, eu, a mãe e o Pedro saímos para encontrar a Natureza e manchá-la, infelizmente. Encontrámos quedas de água e rios, àrvores e fungos, pedras e folhas e, nisto tudo, uma bela manhã de Outono. Senhor Francisco Providência, se por acaso ler isto, pode bater-me na terça, que eu não me importo!

Friday, November 04, 2005

Para viver é preciso namorar a vida.

Para viver é preciso namorar a vida.
Por favor arranje um amante.
Durar é ter medo de viver. É trocar o hoje pelo incerto amanhã.


Frases soltas que retirei de conversas em programa de rádio ao sábado à tarde.

Que significado tem para mim? Muito.
Quantas vezes hipotecamos a vida presente por um amanhã supostamente melhor? Faz-me lembrar, aquela imagem recorrente, dos que tem por objectivo ganhar dinheiro que não tem tempo para gastar. Trabalhar por gosto é viver. Praticar desporto por gosto é viver. Namorar a vida é encontrar gosto a cada passo, é descobrir encanto nas coisas mais simples, é ser capaz de contemplar. Mais importante do que tentar adiar a morte é viver.
A ideia de vida eterna é markting. Sob a ideia de qualidade de vida vende-se imagem, corpos belos e saudáveis, iguais, indefinidamente e por muitos anos. O corpo não se transforma, envelhece e mantém-se jovem. Luta-se exaustivamente contra as rugas, contra a flacidez, contra o cabelo branco, contra ….Fazem-se sacrifícios imensos e compram-se hipóteses. Põem-nos uns óculos que só deixam ver beleza na juventude e na perfeição do modelo esteticamente convencionado. Os mesmos óculos que ficcionam a vida e a transformam em imagem de telenovela: praias idílicas de mar azul turquesa, palmeiras e bebidas espirituosas, claro que com a melhor companhia, quente e bronzeada deitada ao nosso lado ou nas suas melhores brincadeiras fogosas.

Viver hoje não é ficção. Comprar a beleza eterna é um logro. Entender que a beleza é eterna é sabedoria e saber vê-la sempre, a minha ambição.

Wednesday, November 02, 2005

Sophia & a poesia

É possível que esta maneira esteja em parte ligada ao facto de, na minha infância, muito antes de eu saber ler, me terem ensinado a decorar poemas. Encontrei a poesia antes de saber que havia literatura. Pensava que os poemas não eram escritos por ninguém, que existiam em si mesmos, por si mesmos, que eram como que um elemento do natural, que estavam suspensos, imanentes. E que bastaria estar muito quieta, calada e atenta para os ouvir.

Sophia, extracto de
arte poética iv

***

Consigo imaginá-la, uma miúda quieta num canto, tão nova e já a ver a música das coisas. Com poemas a cairem-lhe nos ouvidos, para ela os escrever. A verdade é que a poesia paira no ar e basta-nos estar atentos para agarrá-la. Às vezes, agarra-se com uma fotografia, outras vezes com a memória, às vezes é um desenho, umas frases, às vezes agarra-se a poesia com um poema. Mas poucos agarraram os momentos como a Sophia.

(este post é para a Susana, que ouve a poesia suspensa no ar.*)

Monday, October 31, 2005

Outono [parte 2]


No Outono, que começa com tigelas de marmelada, nós sentamo-nos tardes inteiras a trabalhar, na mesa da sala, enquanto a chuva molha as folhas acabadas de cair.

Sunday, October 30, 2005

Escola de Educação Ambiental da Quinta da Gruta


Voltei à Escola Ambiental da Quinta da Gruta.
Depois da inauguração formal. Hoje com chuva.
Pela segunda vez esta obra voltou a falar-me. Pondo a hipótese de o conceito não ser brilhante (sobre este tenho alguma dificuldade em estabelecer qualquer julgamento) penso que nesta obra, conceito e construção, não só andam a par, como se identificam completamente. É paradigmática sob este ponto de vista: a exaustiva atenção para que cada pormenor e mais do que isso, para que o próprio processo construtivo se identifique com a ideia. Sente-se que o resultado decorre duma íntima relação da obra com o seu autor e deste com o construtor/artesão. O processo construtivo está completamente determinado pelo projecto e pelo resultado que se pretende obter. Mudar a ordem de construção, mudar o dimensionamento de uma peça, de uma das camadas de que é composta a parede ou a cobertura, implica uma sucessão contínua de alterações em cadeia. Não há detalhe, o detalhe é a própria obra.
Tudo se conjuga para a desconstrução da forma a partir dela própria. A forte presença volumétrica exterior, construída a partir de uma solução de decomposição dos volumes ritmada e de regra mais sensível do que racionalmente perceptível, abre-se a um interior desconcertante. Um corredor roto, completamente iluminado de luz natural que nos coloca no exterior. Um corredor/rua que se vai sucedendo em praças, largos, recantos, mais ou menos misteriosos. Ainda que de um relance, após a passagem do átrio iniciático, se abranja toda a longitude do edifício, ele nunca nos é presente, excepto pela condição do nosso percurso.
Aqui arquitectura percorre-se, a arquitectura usa-se.

Saturday, October 29, 2005

Machu Pichu



Quando há dias ouvi a notícia dos turistas que ficaram bloqueados por uma derrocada em Machu Pichu, recordei a minha viagem, também em Outubro, mas de 2004, faz hoje exactamente um ano.
Esta é uma memória recorrente que faz tanto mais sentido quanto o tempo dela nos afasta. O peso da altitude, a obra do homem e a pujança da natureza … e eu, perdida no ar rarefeito, com os movimentos lentos e entrecortados pela atmosfera e pelos raios intensos do Sol, como planos fixos.
De resto o mistério que ainda envolve este lugar contribui para o insólito da experiência.
Ficar preso em Machu Pichu deve ser assustador. Porque esta cidade encantada e perdida emerge de desfiladeiros apertados donde se despregam grandes pedras. Águas Férreas, povoado donde se acede a Machu Pichu é asfixiante – uma fenda que é bom deixar. Lembro-me de comentar que não queria ficar naquela terra nem uma noite. Ao contrário Machu Pichu é uma fuga para o céu onde apetece repousar.
Deixo aqui um dos desenhos que então me ajudaram a sentir esta cidade.

Snow Borne Sorrow


A tarefa a que Sylvian, Jansen e Friedman se propõem, ao juntarem-se sob o nome de 9 Horses, é a revitalização da pop acústica já muito explorada por Sylvian, ao longo do seu percurso musical. Snow Borne Sorrow é um disco que escorre como um todo parecendo não ter princípio nem fim, sem se destacar uma canção. Isto é bom, não mau. Um disco para ouvir no quotidiano: ao acordar, no caminho para a universidade, nas aulas de desenho, no comboio, no carro e numa conversa ao jantar, a trabalhar, para adormecer, enquanto sentado, a ouvir o vento rebolar, do outro lado da janela. A voz de David Sylvian é inconfundível, grave e profunda, com uma dicção perfeita, desvendando as letras geniais. Os músicos, de uma mestria exímia, tocam melodias complexas em pormenores que resultam num ambiente quente e sensível. Steve Jansen e a sua bateria e percursão estão no seu melhor. De salientar só a vontade que me dá, ao ouvir a faixa número 8, Serotonin, de abanar e balançar a cabeça, como fiz no carro, com o pai, hoje. O grafismo do cd é belíssimo e cuidado. A comprar, não aconselho download. Podem ouvir-se alguns segundos aqui.

Friday, October 28, 2005

apenas um poema

Não são duradouros, o choro e o riso,
Amor desejo e ódio:
Penso que não fazem parte de nós depois
Que passamos o portão.

Não são duradouros, os dias do vinho e das rosas:
Saído de um sonho enevoado
O nosso caminho emerge por algum tempo, fechando-se depois
Dentro de um sonho.

Ernest Dowson (1867/1900)
In Rosa do Mundo- 2001 Poemas para o futuro
(tradução de Cecília Rego Pinheiro)

Thursday, October 27, 2005

Joaniversário



(peço desculpa a todos os que já passaram os olhos por esta imagem...) É só para dizer que a mais nova deste blog está um bocadinho mais velha.

Wednesday, October 26, 2005

O Arco das Espumas

O mar rolou as suas ondas negras
Sobre as praias tocadas de infinito.

Sophia de Mello Breyner Andersen
em " O tempo dividido"

Hoje estou triste

Para quem me lê, dos que lidam comigo todos os dias. Sei que são alguns.
Hoje também estou em perda. Aquele post de há uns meses, sobre a reserva de eficiência, hoje não é verdade. Depois de 21 anos de serviço na Câmara onde trabalho, de 13 como Directora de Departamento, decidi mudar. Por vontade própria e contra outras vontades. Mas saibam que estou triste. Este bolg, desculpem-me,será algumas, raras vezes, diário. Hoje. Sinto-me um pouco perdida dos olhos dos que me apoiam e me gostam. Um pouco desconfortável por não saber exactamente o que me espera.
Desculpem o desabafo incongruente com a dinâmica de mudança que eu sempre defendi.
Tudo bem. Eu sei que nada ficará na mesma e que amanhã seremos outros, com ou sem vontades de mudança determinadas.
Mas hoje estou triste e parada sem energia e sem vontade.

Monday, October 24, 2005

Domingo de manhã


Arte conceptual por via do trabalho da Joana.
Divertimo-nos imenso a preparar uma fotografia. Não uma fotografia qualquer, mas daquelas que exigem muita preparação e engenho. Pinhas a arder, água vísivel, terra preparada e ar – puramente conceptual. Mais um Pedro ágil e bem disposto, para tirar a fotografia encomendada pela Joana, que tem vertigens. Tudo para retratar Alberto Carneiro – ele que não saiba da galhofa. Os quatro elementos e a Seiva, palavra escolhida pela Joana, para retratar a personagem e a obra.
Este mundo e estes domingos às vezes são particularmente interessantes e revitalizantes.

Friday, October 21, 2005

A pergunta pró-activa


Quando me encontro perante a dúvida do que devo fazer.
Quando a legalidade me leva para uma resposta que contradiz o bom senso.
Quando o socialmente ou politicamente correcto contradiz a minha verdade.
Faço a pergunta ao contrário: O que é que perco se proceder contra a lei, ou contra o social ou politicamente correcto? O que é que os outros perdem? Se a minha atitude vier a gerar um problema como o resolvo? Tem solução a posteriori?
Estas perguntas são de risco e induzem a acção. Não são defensivas, não me deixam instalar na paz podre. Tenho para mim que, o que não quero, é decidir distraidamente e sem pesar consequências. Isso é erro e negligência. Agora quando ajo conscientemente, estou segura, porque saberei, perante qualquer um, justificar a razão porque o fiz… e se for “condenada” será pela minha boa causa.
Dizia-me hoje uma minha colaboradora: " Pois é! Agora, não quero engolir um sapo e depois vou ter que engolir um elefante!"

Presidente interplanetário

Porque acabei de ouvir Cavaco Silva.
Muitos vão ser os comentários hoje, amanhã e depois de amanhã!
Não vou comentar conteúdos, não vou manifestar-me a favor ou contra.
Aliás, terão de repetir o discurso muitas vezes para eu descobrir alguma coisa.
Mas continua a ser o homem frio e tenso. Cada palavra parece arrancada de um poço de escuridão e profundidades insondáveis.Tem um ruído metálico de fundo que soa a qualquer engrenagem desconjuntada.
Nem a particularidade de o fazer no dia de aniversário do seu casamento torna este homem mais humano. Será sempre um extraterrestre.
Teremos um presidente interplanetário?

Wednesday, October 19, 2005

Temporada de Patos


Um filme num preto e branco mexicano, em que só nos apercebemos do ruivo do cabelo da personagem, quando, mais tarde, o declaram. Um filme cheio de subtilezas, variando entre o denso e as piadas non-sense, cheio de imagens que parecem quadros, impossível de descartar uma cena que seja (a não esquecer o discurso de Ulisses acerca do vôo em v dos patos e a cena final do quadro atado à mota, com uma corda, a passear pelas estradas movimentadas). Um despojamento de recursos, utilizando o mínimo possível, a fazer lembrar a comparação de Ilkka Suppanen: “Eu acredito que o Design é como a Poesia: absoluta e precisa com o uso mínimo de meios para obter um resultado máximo”. A história é simples e enche-nos em cada expressão. Uma montagem peculiar, em frames, com um incrível uso de silêncios e sons quotidianos. Eu e a Raquel saímos do cinema com o brilhozinho nos olhos, da música do Sérgio e conversámos o caminho todo para casa, acerca das imagens. Genial, até na banda sonora. Agarrem se puderem, Temporada de Patos.

Monday, October 17, 2005

Somos

Ainda de Alberto Carneiro:
Penso logo existo: não. Existo e por isso penso.
...ou o erro de Descartes, segundo Damásio.

Para os mais novos

Hoje, Alberto Carneiro relembrava à Joana o que dizia aos seus alunos :“Ignorante não é quem não sabe. Ignorante é quem não quer saber.” Esta é uma postura de vida. Não pudemos nunca saber tudo, porque somos ínfimos no meio de toda a informação que nos chega. Mas, sob pena de ficarmos ignorantes, não pudemos recusar saber mais, nem devemos resistir aos novos temas que se nos abrem. No mundo da informação, a desinformação é o nosso maior inimigo. E na sua maioria a informação que nos chega é superficial e pouco rigorosa, feita de falácias, de preconceitos e de estilos de vida ficcionados.
Por ignorante entendo não me perceber na minha relação íntima e individual com o mundo e com a natureza. Essa construo-a por referência a outros e com outros, por isso, também como ele diz, procuramos a informação para saber aquilo que não queremos fazer. Nada existe por si só, mas por referência, no campo da matéria e no campo das ideias.
"Quando um artista se lança na criação, só existe a sua necessidade de expressar-se enquanto indíviduo. Esta necessidade quase biológica tranforma-se numa força motriz contínua e poderosa." Gao Xingjian; Por otra estética seguido de reflexiones sobre la pintura; Editora: El Cobre
…e para os mais velhos a quem a novidade assusta!

Sunday, October 16, 2005

A Cultour em Santiago


Como vem sendo hábito ( aparte a modéstia) a visita da Culrour correu lindamente.
Porque as obras são excepcionais.
Porque o arquitecto Marco Rampulla é simples e acessível (desculpem se firo susceptibilidades, mas nem parece argentino).
Porque as pessoas são das mais variadas origens e gostam de arquitectura.
Um público de eleição.
Vivemos calmamente um dia diferente que vai ficar na nossa memória muito tempo.
Brevemente darei outras notícias.
Ficam duas fotografias feitas com o telemóvel, porque a minha fotógrafa falhou.

Thursday, October 13, 2005

Das Lágrimas

Das Lágrimas

A pequeníssima aranha assusta
a criança que eu estava a olhar,
e chora. “ Meu duplo filho,
não temas a imensa labuta
da caçadora de insectos.
Ela estende uma rede, tão frágil
que a podes romper com o menor dedo.
A menos que, antes do gesto, encontres
a beleza do tecido luminoso,
quando a aranha ofende o Sol
roubando-lhe alguns raios,
ou a beleza da água que ela retém,
como diamantes sem preço,
rosácea de lágrimas.”

Fiama Hasse Pais Brandão

Memória de momentos mágicos que se podem esfumar ao mínimo gesto.

linguagens

Ontem, Marco Martins, em entrevista a Carlos Vaz Marques na TSF, dizia que no início da sua actividade cinematográfica, nos primeiros dois anos, quando ia ao cinema não conseguia ver os filmes, olhava para eles como making of’s. Hoje uma terapeuta pela música, que foi ao programa da manhã da Antena 2, dizia que era preciso “ libertar a técnica para usufruir da música”. Dizia ainda que, embora com formação musical no Conservatório Nacional, se diferenciava dos colegas, porque quando ia ouvir um concerto, imaginava coisas em vez de analisar a obra.
Levantam-se questões interessantes e aparentemente contraditórias com o que penso. Provavelmente há vários estádios de maturação e entendimento de uma linguagem, mas será que só quando a dominamos completamente, somos capazes de retirar dela o verdadeiro gozo?
Será que quando desconhecemos completamente as regras de uma linguagem temos a mesma abertura para a acolher sem preconceito na sua plenitude? De uma forma menos completa mas até mais aberta e despreconceituosa? E será que se soubermos as regras ficamos presos a elas e não podemos interpretar a linguagem conforme o sentimento?
Dúvidas que partilho. Porém julgo saber que o caminho da procura e do conhecimento é irreversível, um vício que nos mantém vivos, pelo gozo de descobrir e precisar sempre de mais descobrir.

Wednesday, October 12, 2005

Nenhuma obra-prima é cobarde

Toda a beleza é previsível, como todo o passado. E exige-se um outro ritmo. Porque é na embarcação do medo que recordas o modo de construir outros barcos. Nenhuma obra-prima é cobarde.
Gonçalo M. Tavares

Tuesday, October 11, 2005

Um voto faz a diferença!

Teria também que dizer alguma coisa sobre as autárquicas. Não me apetece dizer nada de comum: “ Que desastre! Isto cada vez está pior! Ao menos o Avelino Ferreira Torres não ganhou em Amarante (triste consolação)! Temos o país que merecemos.”
Sim senhor! Este é o país que temos, eu sou cidadã eleitora. Votei na freguesia de Vermoim, concelho da Maia, Escola Preparatória Gonçalo Mendes da Maia, na mesa de voto nº 1, com o cartão de eleitor 1699.
Mas, … em Manteigas o PSD ganhou ao PS por um voto. Como é lógico e evidente o candidato do PS pediu para recontarem os votos. A Comissão Nacional de Eleições disse que não era possível porque as actas estavam todas assinadas sem ter havido, no acto, qualquer contestação.
Porque é que o que é lógico se torna impossibilidade? Somos escravos das leis, do papel?
Mas o lema denominador comum de todas as campanhas foi: “ Primeiro as Pessoas”. As pessoas não se enganam e um voto legitima uma equipe, com maioria absoluta, para governar quatro anos. Um voto faz a diferença!

Monday, October 10, 2005

Atárquicas 2005

Desculpem dizê-lo assim e desculpem ferir susceptibilidades, mas este país a votar É UMA MERDA! Fátima, Isaltino, Valentim e o Rio. Mais 4 anos no charco.

Friday, October 07, 2005

A casa e a música (partes III e IV)

Parte III ( dia 6 às 21 horas)
A casa estava cheia de um público mais formal e mais social, mas muito menos musical.

Il Giardino Armonico
Conhecia interpretações mas nunca os tinha visto ao vivo ou em qualquer filme. Se não estranhei o insólito da interpretação que se faz de ritmo e movimento, fiquei no mínimo presa à composição e movimentação dos músicos no palco. Os músicos tocavam de pé, excepto o violoncelo o alaúde e o cravo, por impossibilidade.
De bom gosto, mas quase a tocar o excessivo no que se refere a expressividade corporal. O Pedro diz que os músicos pareciam árvores frágeis ao vento. Polichinelos movimentados por qualquer teia invisível.
Com Viktoria Mullova. Achei muito interessantes as variações de intensidade que numa transição suave nos absorviam até ficarmos presos no mais ténue som do violino. ( Vantagens da acústica da casa?)

A música
Vivaldi, Sammartine e Haendel, todos da mesma época, mas Vivaldi muito diferente. Para mim de uma composição mais clara, mais sintética e mais directamente comunicativa.

Parte IV ( dia 7 às 13horas)
A casa estava virada do avesso. O concerto foi na sala 1. O público estava no coro. Viktoria virada de costas para a plateia e de frente para nós. Um público musical.

A música uma bolha. A ténue superfície transparente separou-nos do mundo e da casa.
Não foi empolgante, mas suave e sóbrio como Bach.
Agora vou regressar ao mundo. A crítica fica para quem sabe…para mim a oportunidade de entrar na bolha.

Wednesday, October 05, 2005

Dogville hoje











Nos últimos dias DOGVILLE tem sido, para mim, um recurso inevitável. A espiral de desagragação dos valores mais nobres do ser humano, a desintegração dos nossos sentimentos até que o lado mais ínfimo e mais negro, cresce desmesuradamente e toma conta do nosso comportamento, o inevitável (ainda que antiquado) maniqueísmo entre o bem e o mal…
Depois a transformação das personagens e de nós com elas quando somos confrontados com a vulnerabilidade e inconstância dos nossos juízos.
Filme profético e divino.
Profético, porque a cada momento presenciamos Dogville nas nossas relações e vemos impotentes, o fio débil mas incrivelmente forte que nos puxa para baixo! Down…down…down…
Divino, porque de uma lucidez exterior e altiva que nos faz sentir como marionetas perante o seu olhar.
( desculpem a composição, mas foi com muito custo que consegui inserir a fotografia. Falta a Joana para me ensinar.)

Tuesday, October 04, 2005

A terra é...

Porque nós temos justificação científica para fenómenos como o de hoje. Mesmo assim sentimos instintivamente, mais ou menos, como refere a Joana, a nossa primeira forma.
Então transcrevo este comentário passado, que me foi oferecido, porque hoje faz todo o sentido:

" A terra é uma grande ilha que flutua num grande mar e está suspensa por uma grande corda em cada um dos pontos cardeais que desce, desde a abóbada celeste, a qual é feita de rocha sólida. Quando o mundo envelhece e fica usado demais, as pessoas começam a morrer, as cordas quebram-se e deixam que a terra se afunde no grande mar e tudo volta a ser água outra vez.”
Como foi criado o mundo - segundo a tribo dos Cherokees - retirado de O Sopro das Vozes, textos de índios americanos.

Monday, October 03, 2005

Eclipse


Hoje o dia nasceu duas vezes. Eu vi as duas. As sombras eram feitas de unhas de sol. Eu e a Helena eramos dois borrões escuros no chão. A manhã parecia vespertina. Senti-me reduzida ao meu instinto, a minha forma primeira, ao essencial. Eclipse.

Desculpa antecipar-me!

Perguntaste: “ Tu viste mãe? Foi tão lindo! E as sombras? Era tão estranho!”
Eu arrepiei-me. Sim, eu também tinha visto. Sozinha, na rua e na sala. Não tinha reparado na diferença das sombras.
Quando falei contigo percebi que o elo estava fechado. Nós e o universo. Nós no universo… e nós percebemos que só encontramos a nossa verdadeira dimensão quando nos entendemos neste mundo infinitamente maior e infinitamente mais pequeno do que nós. Por isso gostamos da física e da filosofia. Por isso sentimos no corpo, como animais que somos, o incómodo e a compensação, de ter vivido este eclipse.

Pina Bausch


Tem presente essa dimensão humana nos olhos profundos, que se afastam do mundo para a distância de um recolhimento interior, na denuncia dessa hesitação do vocábulo que possa substituir o gesto e tornar transparente o seu sentido profundo na ausência do bailarino. É um olhar da mesma ordem de complexa vulnerabilidade da vida que aborda em algumas das suas peças. Quando se solta o discurso, normalmente sobre processos ou sobre a dificuldade do dizer, gesticula as belas mãos magras num novelo de movimentos que ondulam e desenham no ar o significado de todas as palavras que não diz.

(Actual-Expresso; 1 de Outubro de 2005)

Sunday, October 02, 2005

Trabalho e Arte

"Nunca nutri especial admiração por Pedro Burmester como pianista. Acho-o dotado desde que o ouvi na aula magna da Reitoria da Universidade de Lisboa no concurso Vianna da Motta em que não foi atribuído o primeiro prémio. Depois desta ocasião escutei o pianista inúmeras vezes e sempre me soube a pouco, creio que Burmester é um superdotado, um intuitivo, para ele o piano é fácil. No meu entender este é o seu principal problema, a apreensão rápida das obras a fogosidade mas pouco amadurecimento, pouco estudo, quando as coisas lhe saem bem o concerto ou recital é excitante mas pouco profundo, quando lhe correm mal é uma trapalhada."

Henrique Silveira no seu blog “ Crítico Musical”
O problema é sempre o mesmo em todas artes. A facilidade é inimiga da profundidade e da perfeição.

Saturday, October 01, 2005

O Vazio da Ausência

"... e de novo acredito que nada do que é importante se perde verdadeiramente. Apenas nos iludimos, julgando ser donos das coisas, dos instantes e dos outros. Comigo caminham todos os mortos que amei, todos os amigos que se afastaram, todos os dias felizes que se apagaram. Não perdi nada, apenas a ilusão de que tudo podia ser meu para sempre".

Quase poderia transcrever este pensamento, extraido de um qualquer texto de Miguel Sousa Tavares, que me foi enviado por uma amiga, sem nada dizer.
Mas não quero.
Porque precisamos de guardar objectos, de pretender possuir pessoas, para nos equilibrarmos? Porque temos dificuldade em conviver com a ausência? Porque fomos educados para uma economia de mercado, na qual o usar e deitar fora, é o fundamento da criação de riqueza? (Ou às vezes até o deitar fora sem usar, como modo de criar valor). Porque nos criam necessidades que não temos?
Tenho vindo a perceber que é mais compensador descolar do ilusório real: uma fotografia, um objecto ( ou até mesmo uma pessoa), para o reinventar com as asas do meu afecto, da minha recordação, do meu amor.

Thursday, September 29, 2005

Cultour

Chegou o momento de apresentar a Cultour – outra das minhas motivações. A Cultour é um sonho, um projecto em que acredito. Com seriedade, com profissionalismo, com militância, pela arquitectura. Deixo a ligação e lembro que a próxima visita acompanhada é no dia 15 de Outubro, a Santiago de Compostela. Para os que nos lêem.

Wednesday, September 28, 2005

Matéria/Corpo

"TORSO. Só quem fosse capaz de contemplar o seu próprio passado como fruto de contrariedades e da necessidade estaria em condições de, em cada momento presente, tirar dele o máximo partido. Pois aquilo que vivemos um dia é, na melhor das hipóteses, comparável àquela bela estátua a que o transporte quebrou todos os membros, e agora mais não tem para oferecer do que o precioso bloco a partir do qual terá de ser esculpida a forma do futuro."
Walter Beijamin; Imagens de pensamento; Assírio e Alvim
"O tema um pouco literário da forma incompleta já não é uma resposta suficiente, ocorre a ideia, profundamente rossiana, de uma reabertura de sentido da matéria que sucede quando a forma foi consumida pela vida e pela experência."Giovani Leoni; Eduardo Souto Moura ; Monografia- Gustavo Gili
Estou com muito sono. Tinha estes dois pequenos textos guardados na memória, para juntar, sem mais.

Monday, September 26, 2005

Björk no Meco, 05.07.03

A longa noite do festival de músicas electrónicas do Meco, pródigo em intermináveis filas de trânsito (10 km delas, duas horas para chegar) e em líquidos a preços de 2025 (1,5 € por imperial ou garrafa de água – o mesmo preço dos cachorros quentes picantes em promoção leve-dois-pague-um no já mítico bar/atrelado Psicológico), valeu pela actuação da Björk. Ao seu lado direito, uma secção de cordas e uma harpa; à esquerda uma parafernália de máquinas e respectivos geeks. No meio, a minúscula (e lindíssima) Björk a colar as duas ambiências. Inteligentemente (ao contrário dos senhores que se seguiram), optou por uma actuação menos popzinha a favor de mais experimentação e total entrega. Os ritmos quebravam-se e ressurgiam, a voz ia a sítios quase impossíveis e as explosões tornavam-se verdadeiras apoteoses, com direito a fogo de artifício (literalmente). Resultado: o público via-se na obrigação de estar concentrado; era apanhado de surpresa a cada instante. A actuação pautou-se precisamente pelo uso e abuso do factor surpresa até no que se refere ao alinhamento. Durante a maior parte do concerto, Björk e a sua trupe interpretaram canções menos rodadas. Apenas no fim, novamente para criar um efeito de apoteose – neste caso emocional, não sónica – recorreram a peças mais recentes ou mais populares.

***
O dia 5 de Julho de 2003 já lá vai e eu tive o prazer de fazer parte daquela plateia que, apanhada num misto de surpresa e maravilha, se deliciou com a islandesa mais conhecida do mundo. Hoje, ao ler esta crítica sobre aquele dia bom de Julho, apeteceu-me partilhar um dos melhores concertos da minha (curta) vida. Queria dizer que, quando ela voltar aqui ao 'quintalzinho', eu lá estarei. Vocês só ganhariam se estivessem também.

Outono


é sempre assim que o outono chega cá a casa.

A casa e a música (parte 2)

Regressei à Casa da Música. À sala 2, domingo à tarde. A mesma experiência de contemplar o entardecer através dos mínimos círculos inscritos na cortina de fundo. A mesma experiência de ver o palco a crescer em intensidade e luz.

O Quarteto
O quarteto Borodin, que me levou até àquele espaço infinitamente precário do limite matemático.

A música
Shostakovich - Quarteto n.º 1 e n.º 13. Shostakovich há muitos anos que o procuro. Cada vez que o ouço descubro novidades. É o compositor que me transposta do clássico à contemporaneidade. O Quarteto n.º13, que não conhecia é um grito magoado.
Depois Beethoven - Quarteto n.º13, um descanço.

A vivência da música é uma experiência individual, a mais individual das experiências.

Sunday, September 25, 2005

Drogas Somáticas

Mesmo antes do post conjunto que faremos sobre “Os EduKadores”, filme de Wans Weingartner, que fomos ontem ver, gostaria de deixar uma pequena reflexão sobre um tema levantado que me motivou. Em conversa, Ian referia a Jule que as drogas que o nosso corpo gera são poderosas. Ela adiantava: “A adrenalina?”; ele respondia: “O medo”.
O conjunto de comportamentos destemidos e sem limite que tem origem em estados de pânico, ou outros, menos impulsivos e mais pensados, que têm também por trás situações de medo, como o medo da morte subjacente a um diagnóstico de doença incurável, relembro “ O Amigo Americano” de Wim Wenders, são de facto efeitos dessas drogas construídas dentro de nós, somáticas – biológicas e mentais. Há uma outra, de que eles não falaram explicitamente, mas que perpassou nos comportamentos dos três amigos: o ciúme. Sob este ponto de vista “Os Edukadores”, ainda que correndo o risco de fazer uma exaltação romântica da amizade, dão dela uma perspectiva utópica, que nos permite o conforto de sonhar, ainda, com a bondade das relações humanas.

Saturday, September 24, 2005

Dia


(previamente postado no meu antigo blog)

Depois do rodopio da primeira semana na universidade, entre trabalhos e saidas à noite, a única coisa que quero do dia de amanhã é um bocadinho deste bonito poema da Sophia. E uma boa noite de sono.

Fevereiro


fevereiro de 2004

Friday, September 23, 2005

As cidades de Walter Beijamin

“Extranjería e infancia son dos formas de distanciamento.”
Walter Beijamin move-se pelas cidades com olhos estrangeiros e maliciosamente infantis. Espia lugares insólitos, comuns e desprezíveis das capitais europeias. Sem preconceitos e estereótipos pode distanciar-se da opaca realidade urbana.
“Lo que contienem las miniaturas urbanas de Benjamin son visiones panorâmicas, miradas surrealistas, gracias a las quales, todo lo que parece entrar irremisiblemente en la decadência es, precisamente, la mejor matéria prima para darnos uma iluminación del futuro.”
Las ciudades capitales de Walter Beijamin; Ignasi de Sola Morales, “Metrópolis”; Gustavo Gili

Thursday, September 22, 2005

Ligações

Este, Estação, Mário Cesariny, um bom poema.

Wednesday, September 21, 2005

Comentar apropriando

O erotismo na cidade, Olhares VI interessante. Não pelo poema em si, nada de especial para mim. Mas pelo conteúdo, mensagem: o preconceito de leitura, a predefinição de comportamentos, a relação baseada em pressupostos, a incapacidade de ler o outro. A dificuldade de vermos fundo, de lermos, de nos lermos e de nos darmos, sem preconceito. Muito claro, clarividente.

Tuesday, September 20, 2005

Do encapar livros

Encapar livros. Um ritual que se repete, todos os anos, desde há doze anos. Há quarenta anos, iniciou-se e durante onze, permaneceu o ritual. Foi com papel encerado, colorido, de desenhos geométricos ou motivos livres. Mais tarde capas de revistas, papel de cópias dos desenhos do escritório do meu pai, plástico ou heliocópias, ainda a cheirar a amoníaco. Agora, nestes últimos doze anos, sempre o papel autocolante transparente. Neutro, eficaz, impessoal e uma tortura para quem se dedica à tarefa. Fui aperfeiçoando o método e agora já estou perita (hoje correu lindamente). Faço-o descontraidamente, livro a livro, uma média de dois ou três por dia, para não me enervar com a empreitada.
Mas, estou quase a deixar de o fazer. Mais um anito e estou safa! Ainda bem.
Restarão as recordações do papel encerado, do cheiro a amoníaco ou do desesperante e eficiente papel autocolante transparente.

Monday, September 19, 2005

Greta Garbo

Greta Garbo é como se dizia no Público: única na sua época e geração. Não há quem se lhe compare no tempo que a antecede e no tempo que a sucede. É uma estrela no céu. Supostamente a minha geração já não responde a estes ideais de beleza, a estes padrões e cânones. Talvez eu não faça parte da minha geração. Fazia hoje 100 anos.

Sunday, September 18, 2005

Os sindicatos da vida

“Nunca saberemos nada sobre eles, como nunca saberemos nada sobre ninguém em estado de adolescência.” Alexandre Melo sobre o último filme de Gus van Sant “ Last Days” Cartaz Expresso de 27 Agosto de 2005.

Inquietante. Porque ao fazer esta afirmação consideramos os adolescentes como um grupo próprio, com comportamentos e interesses próprios, como uma classe aparte. Faz-me sempre confusão quando se divide o percurso da vida em partes, sendo cada uma delas estanque. Sai-se de uma classe e entra-se na outra. Vêm-me sempre à cabeça que deveria haver o sindicato dos bebés, das crianças, dos adolescentes, dos jovens adultos, dos adultos em maturidade, do início da terceira idade e dos velhos.
Mas cada um de nós desliza por estas etapas, com mais ou menos consciência delas, vive em grupos heterogéneos e não se associa, nem organiza, em função das fases da vida.
Por isso esta visão de impenetrabilidade que subjaz à frase de Alexandre Melo, como todo o artigo, como provavelmente o filme de Gus van Sant, angustia-me e se, pode fazer todo o sentido em função do que a motiva, o filme, a obra de arte, não faz em termos de vida.
Nós vivemos juntos e queremos ser felizes juntos. Não me tirem os belíssimos momentos de sintonia intergeracional que tenho com os meus filhos e com os amigos deles.
Pelo meio de muitas incompreensões e desajustes reivindico o direito de ainda ser adolescente, às vezes.

Thursday, September 15, 2005

...



Às vezes, na vida, parece que chegamos sempre atrasados. Até à própria vida.
Não se abre lugar para calar a doçura da dor, para chorar os espaços vazios dentro do nosso corpo.

Conta-me o que sabes
eu quero absorver tudo
e morrer sobre a areia quente
de um dia de verão
lentamente.

Prédio do Coutinho

Ainda a sobre implosões, o Ministro do Ambiente e Ordenamento do Território, Nunes Correia, a propósito das implosões em Tróia, referiu a implosão do prédio do Coutinho em Viana do Castelo, esta de interesse público.
Li na edição do Expresso do último sábado, que o arquitecto Eduardo Brito, autor do projecto, vai pôr uma acção contra o estado português com base no Código de Direitos de Autor, pedindo uma “avultada indemnização” se o prédio for demolido. No mínimo polémico.

Wednesday, September 14, 2005

Funcionários Públicos

Ouvi hoje a crónica “Economia dia a dia” do António Peres Metelo na TSF de que sempre gosto. Falou dos funcionários públicos e das reduções orçamentais da despesa pública. Dizia que em Portugal, os vencimentos dos funcionários públicos representam 15% da despesa pública, enquanto que nos países connosco comparáveis é de 11%.Para atingirmos esse valor teria que haver uma redução média de €550 por salário de cada funcionário ou teriam que ser despedidos 200 000 funcionários públicos.
Espero que os números estejam certos, porque ouvidos a tomar o pequeno-almoço às 7.40h, apontados no papel que se tem à mão, para serem reproduzidos às 17.30horas, constituem já uma soma considerável de imponderáveis para serem totalmente fiáveis.
No entanto o que me interessa é pensar sobre eles. Eu como funcionária pública, sei que é preciso reduzir à despesa e não me importo de o fazer. Espero que se mantenha a vontade de mexer com os interesses estabelecidos e que, as medidas sejam levadas até ao fim, sem medo dos juízes, dos professores, dos enfermeiros, dos médicos, dos polícias, dos militares, dos …e dos políticos. Os interesses são muitos e as queixas, evidentemente, cruzadas.

Tuesday, September 13, 2005

Interpretar a Arte


Quando escrevi sobre Mahler concluí que mudamos de patamar no entendimento da música, quando aprendemos a gostar dela, mesmo que ela não sublinhe o nosso gosto, o nosso modo de estar no mundo, ou o nosso estado de espírito.
O mesmo direi para as outras artes. É preciso distinguir o gostar espontâneo, intuitivo, do gostar que vem a seguir ao aprender a gostar. Este, o aprender a gostar, é um processo, que implica tempo, paciência, atenção e estudo. Fazer uma fotografia, é diferente de fazer um desenho do mesmo local; olhar para uma planta ou um alçado não o mesmo que redesenha-los, percebendo os seus traçados; ler um texto não é equivalente a transcrevê-lo; e provavelmente copiar uma partitura não será igual a ouvir uma peça musical (isso infelizmente não posso atestar).
E gostar porque se percebeu a génese e a forma, porque se enquadrou no tempo, é profundo e não se pode esquecer nunca mais. Não é susceptível a mudanças conforme estados de espírito. Pode confortar-nos mais ou menos, mas não é por isso que deixaremos de gostar.
Posso no entanto entender sem gostar? Se gostar implica uma adesão emocional?
Tenho para mim que se nos dedicarmos seriamente a entender uma obra de arte, se lhe dermos esse tempo para ela falar, para ela interferir connosco, aprenderemos a gostar.
Ou então talvez ela não seja uma obra de arte.
Hoje que vivemos a cultura do imediato, do consumo, é essencial educar pela arte, tanto no que isso representa de dedicação e de atenção ao não evidente, como nas portas que abre a valores de solidariedade e de humanidade, sempre na relação com aquilo que nos ultrapassa, ainda que isso, sejemos apenas nós, Homens, na nossa maior dimensão.

Saturday, September 10, 2005

Individualidade

“Por que é que essa vozinha obstinada dentro das nossas cabeças nos atormenta dessa maneira?” disse ele, olhando à volta da mesa. “ Não será por nos recordar que estamos vivos, a nossa mortalidade, as nossas almas individuais – a que, ao fim e ao cabo, temos demasiado medo de renunciar e no entanto são o nosso maior motivo de sofrimento? Mas não é muitas vezes a dor também uma forma privilegiada de tomarmos consciência do nosso próprio eu? É uma descoberta terrível a que fazemos em crianças ao verificarmos que somos parte separada do resto do mundo, que nada nem ninguém dói juntamente com a nossa boca escaldada ou joelhos esfolados, que as nossas dores e sofrimentos são só nossos. Mais terrível ainda é constatar, à medida que envelhecemos, que ninguém, por mais querido que seja, poderá alguma vez compreender-nos verdadeiramente. Os nossos eus fazem-nos terrivelmente infelizes, não acham? Lembram-se de Erínias?”
“As Fúrias”, disse Bunny, com os olhos baralhados e perdidos sobre a madeixa de cabelo.
“Exactamente. E como é que elas enlouqueciam as pessoas? Aumentavam o volume do monólogo interior, ampliavam as qualidades já presentes a um ponto excessivo, transformavam as pessoas nelas próprias a tal ponto que elas não aguentavam.”
Donna Tartt; A História Secreta; Dom Quixote

Religo este extracto, de um dos livros que leio actualmente, com o paradigma da individualidade, constante na pós-modernidade, versus individualismo, enquanto lado destrutivo da individualidade, e ainda com o texto “Vida Real Inventada”, publicado aqui em 7 de Setembro.

Friday, September 09, 2005

UM país?

Dois factos alimentaram as interessantes conversas que tive durante o dia. Não as vou reproduzir, apenas lembrar:
O relatório da ONU para o desenvolvimento humano e a demolição das torres de Tróia.
Segundo o primeiro Portugal é o país com mais desigualdade da União Europeia e desceu um lugar na ordenação em função do desenvolvimento humano. Não é de estranhar porque para a definição do ranking contam os níveis educacionais. (*)Mas no mundo o fosso entre ricos e pobres também aumentou. Temos dois mundos, ou até três – o dos ricos, o dos pobres e dos ricos que oficialmente são pobres – os que não cumprem as suas obrigações fiscais e outras. Infelizmente em Portugal este número cresce.
Quanto à demolição das torres, para além de ser o primeiro processo de implosão com dimensão em Portugal, parece que reverte em alguns ganhos ambientais e, evidentemente económicos. Qual será o mundo que este processo vai enriquecer: o primeiro, o segundo ou o terceiro? Ou será que vamos ainda conseguir construir Um país?
(*) mas como o principal investimento em educação, em Portugal, é no ensino superior, este também contribui para aumentar o fosso entre ricos e pobres.

Thursday, September 08, 2005

Colhe todo o oiro

Colhe todo o oiro

Colhe
todo o oiro do dia
na haste mais alta
da melancolia.

{Eugénio de Andrade}

vida real inventada

A limitação da comunicabilidade, imposta por regras morais e sociais, reduz a nossa liberdade, limitando a profundidade das relações. Quando fantasiamos comportamentos, construímos histórias, fazemos discursos, que não podemos (pelas tais regras sociais), ou não conseguimos (pelas morais que nos impomos) materializar, ficamos evidentemente insatisfeitos. Neste caso se estamos presentes num quadro real, no qual nos projectamos com um papel diferente daquele que conseguimos realizar, a decepção é maior.
A presença de outro ou de outros, torna-se mais dolorosa, porque se é obrigado a ignorar aquilo que não é ignorável – a vontade intensa de construir aquela história.
É mais fácil, não sei se mais saudável, ter fisicamente afastado o objecto do nosso interesse ou o cenário da nossa história. Assim a nossa imaginação é livre e a confrontação, violenta e presencial, com a impossibilidade não existe, deixando por isso espaço à imaginação para ver apenas o rosto do outro, que eu próprio construo.
Até que ponto esta atitude não se traduz em comportamentos patológicos, em a que realidade se confunde com o sonho, passando o mundo a ser uma ficção? Ou é possível manter um saudável equilíbrio entre sonho e real, que permita dar espaço ao outro diferente da nossa criação, sem perder o sabor dessa nossa criação?
Apesar das dúvidas julgo que ser adulto é perceber este jogo e jogá-lo, constituindo deste modo a almofada para as nossas desilusões quotidianas. Sonhar de olhos abertos e como dizia Walter Beijamin, “nunca contar os sonhos antes de tomar o pequeno-almoço”. Adaptando: partilhar com parcimónia a nossa vida real inventada.

Tuesday, September 06, 2005

Távora, novamente

Hoje, Távora esteve connosco à mesa do jantar.
Raramente, em tempo de trabalho, conseguimos sentar-nos à mesa para jantar, os quatro, a horas decentes (entenda-se, entre as nove e as dez da noite). Hoje, foi mais para as nove, caso raríssimo.
Falamos de arquitectura ( e vida). Da importância de Fernando Távora na arquitectura portuguesa, da Escola do Porto, de Carlos Ramos, do conjunto de circunstâncias excepcionais que nos fazem hoje presentes, e que nós, teimosamente, escondemos no fundo do baú. Da internacionalização e da valorização das origens – legado de Távora, que nos abre portas de um modo consciente e nos faz redescobrir, informadamente, o nosso passado, a tradição. Temos uma enorme herança a defender, um enorme legado para pôr a render. Outros antes de nós o fizeram: Álvaro Siza…e todos os outros, que mais atrás, constituem a base onde ele é, para o mundo, Álvaro Siza.
Os olhos dos meninos brilhavam. Embora nenhum deles se prefigure na esteira da profissão, são sensíveis e sabem o que significa estar de corpo inteiro naquilo em que se acredita.
Por hoje, uma boa noite.

Sunday, September 04, 2005

Foi num dia calmo de fim de verão

Está um magnífico dia de fim de verão. Daqueles de que eu gosto.
De manhã fomos à praia. Não havia vento. Não estava muito quente. Não havia muita gente.
De tarde o tempo correu devagar. Nada foi feito do princípio ao fim, mas à medida do que foi apetecendo: ler, ouvir música, registar CD´s, cozinhar, tomar café fora. Tudo se misturou, na paz que interliga todas as coisas e os seres, inexplicável e harmoniosamente.
Agora um frio ligeiro retesa-me os músculos e o sol vai-se lentamente.
Foi num dia assim que morreu Fernando Távora.
A minha homenagem.
Porque também é preciso merecer a morte.
Para os mais novos (que sei) que lêem este blog.
A Joana teve o privilégio de o conhecer e por isso tem a sorte de o recordar.
Fernando Távora foi um Homem. Que nos seduziu, a mim e a muitos, de um modo suave, como esta tarde de fim de Verão, mas duradouro.
Fernando Távora não morreu, porque um Homem nunca morre.
Para os mais novos que gostam da vida e da arquitectura, comecem por ler " Da organização do Espaço"* e deixem-se ir levados por esta lenta tarde calma de fim de verão.

(*) Edição do Curso de Arquitectura da ESBAP - julgo que foi reeditado pela FAUP

Saturday, September 03, 2005

Nova Orlães - EUA

Acabei de ouvir o testemunho de Mário Rui de Carvalho, em directo de Nova Orleãs, no noticiário da antena 2:
- 400 000 crianças abandonadas;
- 1 000 000 de pessoas sem abrigo (na sua maioria estes são as pessoas de menos posses, que não puderam, em um dia encontrar meios para abandonar a cidade);
- 25 000 pessoas refugiaram-se dentro da superdome, muitas estão armadas;
- 300 soldados com ordens para atirar a matar.


Nova Orleães localiza-se nos Estados Unidos da América do Norte.
Há efeitos exponenciais que derivam de má gestão ambiental e territorial.
Assustador.
Se assistimos, na sequência do Tsunami, a ondas de solidariedade e a comportamentos humanos e humanitários por parte das vítimas e de todo o mundo, porque é que aqui é diferente? Porque é que as pessoas se comportam como animais ferozes e a solidariedade internacional se retrai?

Thursday, September 01, 2005

O primeiro patamar da arquitectura

A leitura do texto de Manuel Graça Dias na publicação da Caleidoscópio sobre o Centro de Documentação e Arquivo do Palácio de Belém, da autoria de João Luís Carrilho da Graça, tocou num ponto que considero essencial no desfazer da condição pós-moderna, na definição da contemporaneidade – a enfatização do indivíduo enquanto ser único, possuidor de um discurso próprio e de uma “visão pessoal” sobre os problemas que aborda, neste caso a obra arquitectónica.

Concordo com Graça Dias quando diz que: “ Encontrar, identificar, lembrar, tornar análogo, é o nosso “processo científico”. Como tal, na pobreza das propostas de leitura residem quase sempre as causas de banalidade das respostas.”
É realmente na falta de capacidade crítica inicial, que se revela na incapacidade de equacionar o problema proposto (no caso da concepção arquitectónica todo o conjunto de condicionantes que informam o projecto), que reside o principal problema da nossa classe. Para além da preocupação em garantir à obra uma fidelidade discursiva que lhe confira uma identidade própria de autor, que Graça Dias tão bem descreve e que relança para o domínio da crítica, há um outro patamar, a meu ver anterior, que não se encontra de todo atingido pela maioria dos profissionais do ofício: a capacidade de leitura da “encomenda” enquanto resposta a um problema concreto, que só o autor do projecto com a sua leitura inteligente, crítica e informada, pode conformar.
Esta ausência de leitura: inteligente (porque relaciona); crítica (porque tem a capacidade de alterar contextos e propor alternativas); e informada (porque conta com a história, com a memória, com o sítio, com as condicionantes técnicas e programáticas e todas as outras); é bem visível na qualidade da nossa produção arquitectónica actual.
É a incapacidade de integrar este “processo científico” na produção arquitectónica e a vontade de afirmação de valores individualistas, em detrimento dos colectivos, que me faz, em parte, duvidar do futuro da arquitectura em Portugal.

Wednesday, August 31, 2005

Radiance - Keith Jarrett

Comprei, finalmente o último CD de Keith Jarret, “ Radiance”, que contém as gravações dos concertos de Osaka e de Tokyo em 2002. Ouço-o enquanto escrevo. Não era isto que estava a fazer, mas a música teve o poder de me obrigar a abrir uma página de Word para confirmar como ela me faz bem. Faz juntar os bocados partidos e soltos da minha existência e reúne-os de novo num ser completo.
Se é jazz, se é mais que jazz, se é clássico, se é perfeito, …pouco importa. Importa sim que me faz pairar numa tensão contínua e latente, que não quebra, não rompe, que me mantém lúcida, a levitar horas, no limiar da integridade.
Quase dói.
Prefiro o de Tóquio e deste a última faixa. Por agora não posso arriscar mais.

Tuesday, August 30, 2005

Sylvia Plath

Vi, hoje, três quartos do filme Sylvia, sobre a poetisa Sylvia Plath. Enquanto filme não me tocou especialmente, não achei muito bom, muito menos, genial. No entanto, ajudou-me a perceber quem escreve os poemas mais escuros e camuflados de Ariel. Tinha comprado o livro há uns meses e senti-me tocada pela forma estranha como tratava a própria morte. Como carrega um peso em cada palavra, o peso de não querer viver. Compreendi-a hoje e custa-me dizer que, até, me revi. Não na paranóia, nem na sede de partir, mas na quietude nervosa, nos ataques de fúria e na vontade de superação. Agora, vou repassar os olhos por Ariel e perceberei melhor o sentido de cada palavra. Artista perto do abismo, como a maioria. A Sylvia enterra-me nos dias depressivos e só me permito ser como ela se, algum dia, conseguir escrever um verdadeiro poema.

***

POPPIES IN JULY

Little poppies, little hell flames,
Do you do no harm?

You flicker. I cannot touch you.
I put my hands among the flames. Nothing burns.

And it exhausts me to watch you
Flickering like that, wrinkly and clear red, like the skin of a mouth.

A mouth just bloodied.
Little bloody skirts!

There are fumes that I cannot touch.
Where are your opiates, your nauseous capsules?

If I could bleed, or sleep! -
If my mouth could marry a hurt like that!

Or your liquors seep to me, in this glass capsule,
Dulling and stilling.

But colourless. Colourless.

Monday, August 29, 2005

Paraíso



“Uma praia que não deixa ninguém indiferente, ou se ama perdidamente ou se detesta.”
Estava dado o mote. Metemo-nos ao caminho, que confirmou exactamente o descrito no guia - ao fim de quatro quilómetros e meio chegamos a um rectângulo de luz.
Algumas viaturas variadas estavam paradas na antecâmara do areal – depressão esboçada por uma linha de água perdida. Algumas tendas. O areal com 1,50Km de extensão está contido por falésias que se desdobram em embasamentos xistosos e calhaus rolados. Do lado poente, entre a falésia e o mar ainda há lugar para uma língua de areia que se mistura ondulante nos calhaus. Do lado nascente, a água límpida desenrola-se por entre as pedras deixando ver areia dourada do fundo, filtrada pelo verde esmeralda transparente da água, ao longe mais azul.
Os poucos habitantes da praia distribuiam-se pelas rochas e deambulavam em serenas observações. Outros pescavam. Cada um – um universo. O vento forte contribui para esse isolamento cósmico.
Na antecâmara da praia, estava parado um triciclo com uma capota e uma cortina que garantia privacidade à caixa. Nela estavam sentados um homem e uma mulher enrolados em mantas de xadrez – a dele azul e a dela vermelho escuro. No dizer dos meus filhos, dois velhotes. Confirmo que tinham para cima de sessenta anos. Ao fim da manhã – que em férias se prolonga até às três da tarde, desceram à praia, enrolados nas mantas, olharam em volta, pousaram suavemente as mantas e partiram nus para o mar. Primeiro ele e depois ela. Deslizaram na limpidez da água e na crueza da luz por longos e pacíficos momentos. Depois saíram da água, enrolaram-se nas mantas e regressaram ao triciclo.
Assim tivemos o privilégio de encontrar o paraíso.

(fotografia da Joana)

Thursday, August 25, 2005

Portugal é Europa

(email que recebi da Mafalda, que está em Bruxelas.)

Na Europa, para além das pessoas bonitas e das casas enormes, há cafés gregos e vietnamitas e turcos e italianos e portugueses por todo o lado com cadeiras de madeira nas esplanadas. Há senhoras vestidas à anos 60 à entrada dos hotéis de 5 estrelas. E há limpeza e organização e saúde. Mas duvido que haja mais respostas às perguntas importantes, seja nos livros, seja na cabeça de quem lê os livros, do que em Portugal.

___

É esta a visão de Portugal que Portugal precisa: um país tão capaz como todos os outros com quem partilha o continente. Temos artistas, gestores, cientistas, temos pessoas e respostas. Só não temos quem nos domine, quem nos ponha no caminho mais compensador. Quando isto acontecer, Portugal será mais Europa que a Europa. Acreditem em nós, por favor. Porque valemos a pena.

Sr. Albino

O Sr. Albino entrava na casa dos meus pais, há quarenta anos também a minha casa, de bicicleta e com uma mala de mão, preta. Dentro da mala estavam os seus apetrechos de barbeiro. Punham uma cadeira com uma banqueta, na parte coberta do pátio (quinteiro) e, à vez, sentavam-nos na cadeira para ele nos cortar o cabelo. Aos meus irmãos, um mais velho e um mais novo, e mim, a rapariga.
Ontem fui com o meu filho e o meu pai visitar o Sr. Albino. No quintal comprido e estreito de casa suburbana, tem centenas de gaiolas com passarinhos de criação. Os seus olhos reluziram ao ver a Çãozinha “…nasceu em 14 de Dezembro, para aí há cinquenta anos” – enganou-se por pouco. “ Com seis meses cortei-lhe o cabelo. Tinha um cabelo forte!” “ A vida é como a recta do Mindelo. Quando olhamos para trás já não sabemos onde é que ela está.”
Os pássaros, vai dá-los, porque já não tem saúde para os tratar. Trouxemos um canário calmo e muito amarelo.
Eu vivo na cidade – a aldeia da minha infância. É insólito como sem sair da “cidade” vivo ainda na aldeia, retorno ao passado e encontro uns olhos que me lêem depois de tantos anos.

Wednesday, August 24, 2005

Festas da Agonia, domingo ao meio-dia – Praça da República [nº2]


Gigantones; Praça da República, Viana do Castelo; 2005.08.21



Tenho andado afastada do Conta-mina por motivos que não importam. A minha mãe mantém o blog vivo e aceso, com uma força juvenil, até. Agradeço-lhe. Nos intervalos do cansaço, deixo esta fotografia. E que fique, também, a minha vontade de dizer que, o que ali se vive, só é inteligível em silêncio. Grande até ao fundo do mundo. Mais fotografias brevemente.

(um pequeno à parte: ouçam Hanne Hukkelberg, Small things e The Books, The Lemon of Pink)

Tuesday, August 23, 2005

Espaço Negativo

Laurinda Alves recuperou, no editorial da X do passado dia 13, um texto essencial de Sophia, ao passar um ano sobre a sua “morte”.

Retirei um extracto:
“A beleza da ânfora de barro pálido é tão evidente, tão certa que não pode ser descrita. Mas eu sei que a palavra beleza não é nada, sei que a beleza não existe em si mas é apenas um rosto, a forma, o sinal de uma verdade da qual ela não pode ser separada. Não falo de uma beleza estética mas de uma beleza poética.”,

que me lembrou outro (para mim sempre essencial):

“Como é que sabe que é uma peça Sung?” Ele voltou a sorrir. “ As proporções – não há outra marca distintiva. Foi por isso que o antiquário falhou. É como o cego, que só se fia no toque familiar dos objectos. Aqui, se fôssemos só pelo tacto, não podíamos conhecer. Tente olhar lá para dentro e sentir as proporções, sentir a maneira como foi moldada, como um ovo de pássaro.” Daí a pouco comecei a ver vagamente o que ele via; era bastante como um teorema em geometria. Compreendi então que o que ele admirava era o modo como o pequeno objecto absorvia o espaço – não era a habilidosa manipulação da matéria, a simples beleza da função. Podia assim, do nosso ponto de vista, dar-se pouco significado a esta pequena recordação, enquanto que do dele era a requintada armadilha destinada a valorizar o espaço ambiente em volta dela. Era a estética chinesa e a capacidade negativa!” Durrell, Lawrence; Um sorriso nos olhos da alma; Quetzal Editores

Com a beleza poética, Sophia vai além da aparência para captar a essência. A beleza poética também é estética, mas uma beleza estética que não se resume ao equilíbrio proporcional, ainda que também ele se defina por referência a uma cultura. A beleza poética sente-se e entende-se como um vínculo a um mundo perfeito, religado, onde a peça, cada peça, é moldada como um ovo de pássaro.

Porque faz sentido falar disto numa perspectiva intergeracional? Porque cada dia a nossa ligação à Terra e ao nosso passado nela, se perde, ou é cada vez de mais difícil leitura. Porque para atingirmos a paz temos que fazer um grande esforço “para olhar lá para dentro e sentir…” a presença na ausência, a força do espaço negativo.

Monday, August 22, 2005

Festas da Agonia, domingo ao meio-dia – Praça da República

Há um momento em que a verticalidade do homem e a sua ancestralidade, entendidas enquanto desafio aos deuses, são demais evidentes. Crescem e excedem-se na ritualidade do ritmo primário e no desejo de superação, afirmação viril. Como animais, evidenciam a sua superioridade física.
O cenário também faz ao caso. A Praça da República em Viana do Castelo é um tratado de urbanidade. Para além de edifícios singulares, entre os quais a Misericórdia supera, a proporção entre o plano horizontal da Praça e a verticalidade dos alçados, que fogem pelas ruas medievais, criam um iato propício ao confronto entre gigantones, tocadores e público. Tudo se mistura no estremecer cúmplice que faz do conjunto uma nova entidade.
É tão primária a expressão, tão forte e solidária a experiência que, quem a testemunha uma vez, sabe que terá que voltar.
Aguardemos pelas fotografias da Joana.

Saturday, August 20, 2005

Para ti...e para ti também!

Para ti.
Reserva de Eficiência. Conceito interessante com que trabalho todos os dias e que significa que, quando se atingem todos os objectivos propostos, há um bónus a que temos direito.
Estou de férias! Dei muito, dou muito, mas nunca dou tudo. Para mim, aqui reside o segredo – a reserva de eficiência. Há sempre um canto, um reduto, só meu, que guardo ciosamente. Aqui está o fermento que me alimenta a imaginação e a alma.
O tempo em que pensava “…dei tudo o que tinha!” já passou. Sabes, isto não quer dizer que não é importante que nos entreguemos apaixonadamente aos nossos amores. Àquilo que fazemos, no trabalho, em casa, com os escolhidos para a vida, com os amigos, nos vícios, … mas nunca tudo! A reserva de eficiência é para nós, não está consignada e usá-la-emos, entregá-la-emos como e a quem quisermos. Independentemente de regras ou pré-conceitos simplesmente pelo prazer de ser e de dar.
Para ti, também!

Thursday, August 18, 2005

Associações

Descontextualizar para associar. Apropriação - cultura.
Faço-o consciente de que a leitura é minha e de hoje, quarta-feira dezassete de Agosto. Pré-férias e muita densidade.
Não posso deixar de referir a fonte: Proust e Lindley Cintra, por Frederico Lourenço no prefácio da Ilíada de Homero.

Deles, de mim, a paixão pela vida.

“No entanto, sejam quais forem as decepções inevitáveis que nos cause, este caminho na direcção daquilo que mal tivemos ocasião de entrever, do que tivemos possibilidade de imaginar, esse caminho é o único saudável para os sentidos, que nele alimentam o seu apetite. Que melancólico tédio marca a vida das pessoas que por preguiça ou timidez se dirigem directamente de carro a casa dos amigos que conheceram sem terem começado por sonhar com eles, sem nunca se atreverem a parar durante o percurso junto do que desejam!” Proust; ( Em Busca do Tempo Perdido) À Sombra das Raparigas em Flor; Relógio de Água; pág. 458; tradução Pedro Tamen

“... mas sem deixar de perguntar a mim mesmo e o saudoso Professor Luís Filipe Lindley Cintra não teria razão ao convir “...ser preferível errar, acreditando, do que acertar sempre mas por cálculo e por táctica.”” Lourenço, Frederico; Prefácio da Ilíada de Homero

Monday, August 15, 2005

Expliquem-me Porquê?

Este é um assunto em que evito pensar porque incomoda. Para além de incomodar porque é triste e assustador, incomoda porque não encontro uma explicação para o que acontece. Ou teremos que nos convencer que há múltiplas razões e por isso múltiplas respostas? E deste modo múltiplas maneiras de nos desresponsabilizarmos.
Fecho os jornais, não vejo os telejornais, mas o fogo bate-me todos os dias à porta, com uma força inolvidável, com um cheiro que me entranha, com um fumo que intoxica e deixa marcas, que anos e anos após, nos tocam de tristeza.
Porquê: são os meios de combate, são os bombeiros, são os pagamentos que se atrasam, são os militares que não participam, são as florestas que estão abandonadas, é a desertificação do mundo rural, é a seca.,…e por certo muitas mais razões.

O que para mim é certo é que a defesa da floresta pressupõe um tipo de trabalho a que nós estamos pouco habituados e que provavelmente não nos interessa.
É um trabalho que:
• tem que se fazer antes de ver os resultados e estes são o não acontecer, tem pouca visibilidade;
• tem que ser global porque a floresta é contínua. Não adianta prevenir-me se o meu vizinho não o faz.
• Não dá resultados imediatos nem garantidos e por isso pode não ser uma boa arma eleitoral;
• Tem uma dose de catástrofe natural que nos desculpabiliza.
• Implica uma mudança de atitude de cada cidadão e provavelmente alterações estruturais no modo de encarar a floresta.E as ditas mudanças estruturais projectadas pelos governos tem que ter uma boa dose de visibilidade ( estilo OTA ou TGV).

É triste perder a nossa paleta interminável de verdes, andar sobre o chão queimado onde não há vida.
Se a floresta é uma das nossas maiores riquezas, tanto no sentido produtivo como de caracterização da paisagem, então, daqui por poucos anos seremos um dos povos mais pobres do mundo.

Saturday, August 13, 2005

Para ti, também!

Não poderei esquecer o dia em que, deitadas na tua cama, depois de uma conversa dura sobre a vida, me disseste: “Oh Mãe! Olha este.” Abriste o livro e leste. Rimo-nos descontroladamente.
Também somos isto. Ou somos isto.


O Canto de Orge

Dizia-me Orge:

1
O lugar na terra que amamos mais
Não é a relva do túmulo dos nossos pais.

2
Dizia-me Orge: para mim o lugar que
Se deve desejar será sempre o W.C:

3
Nesse lugar é permitida a cada um a alegria
De ter por cima a estrela, e, por baixo, a porcaria.

4
Lugar admirável onde se po-
de adulto ficar só.

5
Lugar de humildade: nele saberás bem
Que não passas de um homem que nada retém.

6
Lugar onde um corpo que no assento repousa
Faz com força e doçura por seu bem qualquer cousa.

7
Lugar de sabedoria onde podes com lazer
Preparar a tua pança para muito outro prazer.

8
Nele te darás conta do que realmente és:
Um pobre tipo que come… nos WW.CC.

Bertolt Brecht

Think Don't Think



A ideia de poder calcar palavras, andar ideias. Quem sabe mudar o dia ao atravessar uma rua. Ter uma ideia, enquanto se espera pelo sinal verde. Ou só pensar. Ter a poesia fora do poemário. As frases fora dos livros. A roubar-nos o stress cosmopolita. Ponham letras nas passadeiras portuguesas e talvez a ignorância fique do outro lado da rua.

Projecto think don't think. Paris.

Thursday, August 11, 2005

Sobre o discurso

De Proust que disseca o quotidiano como ninguém. Com ele os sentimentos mais prosaicos, mas também mais fundamentais e permanentes desde sempre no homem, revelam-se em todas as dimensões e profundidade.

“ A verdade que pomos nas palavras não abre caminho directamente, não é dotada de uma evidência irresistível. É preciso passar bastante tempo para que uma verdade da mesma ordem se possa formar nelas. Então o adversário político que, apesar de todos os raciocínios e de todas as provas, considerava o sequaz da doutrina oposta um traidor, partilha igualmente a convicção detestada na qual aquele que procurava inutilmente difundi-la já não acredita. E a obra-prima que para os admiradores que a liam em voz alta parecia mostrar por si mesma as provas da sua excelência e que aos outros ouvintes apenas oferecia uma imagem insana e medíocre, será por eles proclamado obra-prima, tarde de mais para que o autor possa sabê-lo.”

Marcel Proust; Em Busca do Tempo Perdido (Volume II) À somra das raparigas em flor; pág. 91; tradução Pedro Tamen; Relógio de Água

Um pouco céptico para o nosso tema da comunicação.